Sistema do direito, novas tecnologias, globalização e o constitucionalismo contemporâneo: desafios e perspectivas

SISTEMA DO DIREITO, NOVAS TECNOLOGIAS, GLOBALIZAÇÃO E O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Organizador WILSON ENGELMANN Casa Leiria

Este livro é o resultado parcial da pesquisa desenvolvida pelos autores no âmbito do projeto intitulado: “Sistema do Direito, novas tecnologias, globalização e o constitucionalismo contemporâneo: desafios e perspectivas”, aprovado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, no contexto do Edital FAPERGS/ CAPES n. 06/2018 – Programa da Internacionalização da Pós-Graduação no Rio Grande do Sul.

SISTEMA DO DIREITO, NOVAS TECNOLOGIAS, GLOBALIZAÇÃO E O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS Reitor Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, S. J. Vice-reitor Pe. Pedro Gilberto Gomes, S. J. CASA LEIRIA Rua do Parque, 470 93020-270 São Leopoldo-RS Brasil casaleiria@casaleiria.com.br EDITORA CASA LEIRIA Ana Carolina Einsfeld Mattos Gisele Palma Haide Maria Hupffer Isabel Cristina Arendt José Ivo Follmann Luciana Paulo Gomes Luiz Felipe Barboza Lacerda Márcia Cristina Furtado Ecoten Rosangela Fritsch Tiago Luís Gil CONSELHO EDITORIAL (UFRGS) (IFRS) (Feevale) (Unisinos) (Unisinos) (Unisinos) (UNICAP) (Unisinos) (Unisinos) (UnB)

Wilson Engelmann (Organizador) CASA LEIRIA São Leopoldo-RS 2020 SISTEMA DO DIREITO, NOVAS TECNOLOGIAS, GLOBALIZAÇÃO E O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

SISTEMA DO DIREITO, NOVAS TECNOLOGIAS, GLOBALIZAÇÃO E O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Editoração: Casa Leiria Os textos e as imagens são de responsabilidade de seus autores. Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 DOI: https://doi.org/10.29327/529171

7 SUMÁRIO 9 Sistema do direito, novas tecnologias, globalização e o constitucionalismo contemporâneo: desafios e perspectivas Wilson Engelmann 15 Constitucionalismo transnacional e governança de crises globais Anderson Vichinkeski Teixeira 27 Garantias e processo penal na era da tecnologia Miguel Tedesco Wedy 37 O constitucionalismo de Angola e a sua Constituição de 2010 Jorge Bacelar Gouveia 81 O uso moral e paternalista do Direito Penal: desafios do punitivismo jurídico para os Direitos Humanos André Luiz Olivier da Silva 99 Considerações e preocupações com a saúde do teletrabalhador no Brasil em um contexto pandêmico, combinando recomendações nacionais com as da OIT, objetivando o respeito aos Direitos Humanos Raquel Von Hohendorff 117 A transnacionalidade do Direito Constitucional no tratamento da COVID-19: as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e a formação de uma terceira fase do Direito Constitucional Leonel Severo Rocha Bernardo Leandro Carvalho Costa 141 Da transição à era nanosustentável a partir da Economia Circular: condição de possibilidade para a gestão do risco Daniele Weber S. Leal 165 O “Admirável Direito Turbo” e a complexidade do Direito Lenio Luiz Streck

8 173 Constitucionalismo e democracia Dominique Rousseau 193 Orden público y arbitraje internacional Francesco Zappalá 199 Law in Time: Legal Theory & Legal History Paulo Barrozo 217 Constitución y relaciones de consumo en la era digital Carlos de Cores Helguera 243 La elevación del “consumo sostenible” a la categoría de principio, en el Mercosur Luciane Klein Vieira 259 Derechos y progreso tecnológico: pasado, presente y futuro José Julio Fernández Rodríguez 279 O desenvolvimento tecnocientífico e a questão bioética dos limites das novas tecnologias Gerson Neves Pinto

9 SISTEMA DO DIREITO, NOVAS TECNOLOGIAS, GLOBALIZAÇÃO E O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Wilson Engelmann1 Os textos que seguem são o resultado do Seminário Internacional realizado no mês de setembro de 2020, com a participação de todos os pesquisadores brasileiros e estrangeiros, que integram a equipe de trabalho deste projeto, intitulado: “Sistema do Direito, novas tecnologias, globalização e o constitucionalismo contemporâneo: desafios e perspectivas”, aprovado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, no âmbito do Edital FAPERGS/CAPES n. 06/2018 – Programa da Internacionalização da Pós-Graduação no Rio Grande do Sul. A seguir se apresentam as Universidades parceiras do projeto de pesquisa: Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da UNISINOS; Universidad Católica del Uruguay, Montevidéu, Uruguay; Université Paris 1, França; Universidad de Santiago de Compostela, Espanha; e Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Contexto do projeto de pesquisa: Vive-se sob os impactos e expansão dos avanços tecnológicos da chamada Quarta Revolução Industrial (SCHWAB, 2018), que trata de mudanças históricas em termos de tamanho, velocidade e escopo, cujos desdobramentos, complexidade e interdependência ainda são, em grande parte, desconhecidos. Os riscos e os danos futuros, em sua maioria, são pouco estudados, mas a decisão precisa ser realizada no presente, 1 Pós-Doutor em Direito Público-Direitos Humanos, Universidade de Santiago de Compostela, Espanha; Doutor e Mestre em Direito Público, Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS; Coordenador Executivo do Mestrado Profissional em Direito da Empresa e dos Negócios da UNISINOS; Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da UNISINOS; Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: wengelmann@unisinos.br. DOI: https://doi.org/10.29327/529171.1-1

Wilson Engelmann 10 através da utilização de novas ferramentas surgidas pela incorporação da ideia de que o conhecimento não poderá mais ficar aprisionado nos limites herméticos de cada campo do saber. É neste tempo em que se deve observar e construir modelos jurídicos permeados pelo paradoxo da certeza/incerteza em relação às expectativas sociais que são continuamente frustradas/satisfeitas por meio da complexidade social em permanente incremento. As transformações da sociedade atual são maiores do que se pode prever, e ainda mais profundas e rápidas do que em qualquer outro momento. Na atualidade, se está no auge do nascimento das novas tecnologias, especialmente: inteligência artificial, robótica, internet das coisas, veículos autônomos, impressão 3D, nanotecnologia, biotecnologia, ciência dos materiais, armazenamento de energia e computação quântica, para citar apenas algumas. Se tem pouco conhecimento sobre os impactos (positivos e/ou negativos) disso em longo prazo. Desta forma, o sistema do Direito e a Quarta Revolução Industrial precisam de uma abordagem a partir da transdisciplinaridade, de modo a contribuir para concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS), em um contexto da fragmentação constitucional interna e o nascimento dos elementos estruturantes de um novo constitucionalismo, alimentado pelos referidos desafios, potencializados por meio da globalização. Os ODS e suas metas são integrados e indivisíveis, globais por natureza e universalmente aplicáveis, levando em conta as diferentes realidades, capacidades e níveis de desenvolvimento nacionais e respeitando as políticas e prioridades nacionais. As metas são definidas como ideais e globais, com cada governo definindo suas próprias metas nacionais, guiados pelo nível global de ambição, mas levando em conta as circunstâncias nacionais. Os ODS exigem uma ação mundial entre os governos, as organizações e a sociedade civil em um contexto de respeito aos direitos humanos. Para os contornos deste projeto, se pretende observar a relação que se estabelece e sua projeção para o futuro entre as novas tecnologias e os direitos humanos (MURPHY; Ó CUINN, 2010), como seu substrato ético, tomando em conta alguns desdobramentos já estudados da RRI, isto é, Responsible Research and Innovation (REBER, 2017). A dogmática jurídica deverá se reinventar, deixando-se permear pelos movimentos da globalização e do constitucionalismo contempo-

11 Sistema do direito, novas tecnologias, globalização e o constitucionalismo contemporâneo:... râneo, sem esquecer dos impactos éticos, sociais e jurídicos – (Ethical, Legal and Social Aspects – ELSA) que as novas tecnologias poderão gerar. Estes movimentos ocorrem por conta das redes que conectam tudo e todos, como já referido por Manuel Castels: “[...] Rede é um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva se entrecorta. Concretamente o que um nóédepende do tipo de redes concretas de que falamos. [...] redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação” (CASTELLS, 2018, p. 553-554). Essas conexões mostram uma das novidades deste momento: acontecimentos em um lado do globo poderão repercutir imediatamente no outro lado. Por conta disso, “[…] a constituição não é mais constituição do Estado, mas constituição da sociedade, pois todas as atividades dos indivíduos, compreendidas pelo direito, podem ser reportadas à constituição; isso é o que, na linguagem jurídica, se traduz pelas expressões “constitucionalização” do direito civil, do direito do trabalho, do direito administrativo, do direito penal, etc., ou seja, pela ideia de que todos os ramos do direito, e não somente o direito político, encontram seus princípios na constituição (ROUSSEAU, 2016). Essa constitucionalização dos diversos ramos do Direito, mostra um indicativo forte da mudança que o projeto de pesquisa pretende investigar. Dele também decorre a emergência do debate sobre o atual papel da Constituição e do constitucionalismo subsequente, na medida em que evidencia uma dificuldade, assim caracterizada pela doutrina: Ao passo que determinados sistemas como o da Economia e o da Religião possuem muita facilidade para serem globalizados, ou seja, para disseminarem suas comunicações para além das fronteiras dos Estados nacionais, outros sistemas, como o do Direito e o da Política, ainda enfrentam dificuldades, na medida em que a produção legislativa, que forma a estrutura do Sistema do Direito por meio da construção política, é atrelada a um parlamento delimitado nas fronteiras de um país (NEVES, 2009, p. 30). Assim, mesmo que as expectativas em relação ao Direito sejam globais, a positivação ainda é dependente de uma organização situada no interior de determinado Estado (TEUBNER, 2016, p. 91; ROCHA; COSTA, 2018). Tal cenário deverá ser observado a partir

Wilson Engelmann 12 do chamado constitucionalismo social (THORNHILL, 2016), onde se possam observar alternativas criativas para a gestão dos riscos que poderão acompanhar o desenvolvimento das novas tecnologias, buscando promover mais investigações para criar um caminho do risco à segurança, ainda que a prática mostre que, quanto mais se conhece e se podem elaborar cálculos cada vez mais complexos, mais aspectos se conhecem e, com eles, mais incertezas e, consequentemente, mais riscos (LUHMANN, 2006). A partir da observação sob diferentes ângulos do constitucionalismo, a saber: desde a perspectiva brasileira, uruguaia, espanhola, portuguesa e francesa – que são as nacionalidades dos pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa deste projeto, se pretende avaliar os influxos internos e externos do surgimento das novas tecnologias e os direitos dela emergentes, acelerados pelo movimento da globalização e o papel do constitucionalismo social. Aqui, portanto, as linhas gerais que estão guiando o desenvolvimento das pesquisas dos diversos pesquisadores, localizando pontos de convergência, que serão destacados nos textos que seguem, fruto de olhares plurais e a partir da experiência jurídica do conjunto jurídico estruturado no projeto de pesquisa, aprovado no referido edital. Referências CASTELLS, Manoel. A sociedade em rede . 19. ed., rev. e atual. São Paulo: Paz & Terra, 2018. LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo . México: Univ. Iberoamericana, 2006. MURPHY, Trérèse; Ó CUINN, Gearóid. Works in Progress: New Technologies and the European Court of Human Rights. Human Rights Law Review , v. 10, p. 601-638, 2010. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo . São Paulo: Martins Fontes, 2009. REBER, Bernard. RRI as the inheritor of deliberative democracy and the precautionary principle. Journal of Responsible Innovation , v. 5, n. 1, p. 38-64, 5 jun. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org /10.1080/23299460.2017.1331097. Acesso em: 14 nov. 2020.

13 Sistema do direito, novas tecnologias, globalização e o constitucionalismo contemporâneo:... ROCHA, Leonel Severo; COSTA, Bernardo. Constitucionalismo social : constituição na globalização. Curitiba: Appris, 2018. ROUSSEAU, Dominique. O Direito Constitucional contínuo: instituições, garantias de direitos e utopias. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito , v. 8, n. 3, p. 261271, set./dez. 2016. SCHWAB, Klaus. Aplicando a Quarta Revolução Industrial . São Paulo: Edipro, 2018. TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais : constitucionalismo na globalização. São Paulo: Saraiva, 2016. THORNHILL, Chris. A Sociology of Transnational Constitutions . Constitutions and State Legitimacy in Post-National Structure. New York: Cambridge University Press, 2016.

15 CONSTITUCIONALISMO TRANSNACIONAL E GOVERNANÇA DE CRISES GLOBAIS Anderson Vichinkeski Teixeira1 Introdução O presente artigo é produto das atividades desenvolvidas no âmbito do projeto de pesquisa intitulado “constitucionalismo transnacional”, vinculado ao PPGD/UNISINOS, que se insere no âmbito do grupo de pesquisa “Direito Constitucional Comparado” e objetiva, em poucas palavras, analisar os diversos processos políticos, econômicos, sociais e culturais que corroboram para a formação de uma nova espécie – ou seria fase evolutiva? – do constitucionalismo ocidental. Trata-se de um grupo de pesquisa que, por intermédio da colaboração entre vários professores-pesquisadores vinculados a Universidades brasileiras e europeias de reconhecida tradição em pesquisa na temática em questão, tem buscado enfrentar as dificuldades epistemológicas do citado objetivo com base em aportes metodológicos suficientemente autônomos em relação ao próprio Direito Comparado. Nas próximas páginas iremos refletir sobre a governança global em tempos de crises pandêmicas à luz do constitucionalismo transnacional, retomando algumas ideias já sustentadas em outras oportunidades (TEIXEIRA, 2011; 2013; 2014; 2016; 2019; 2020). Constitucionalismo transnacional e governança global: repensando a gestão das crises globais As notórias dificuldades conceituais do termo constituição acabam se tornando um primeiro óbice para uma constituição cosmopo1 Doutor em Teoria e História do Direito pela Università degli Studi di Firenze (IT), com estágio de pesquisa doutoral junto à Faculdade de Filosofia da Université Paris Descartes-Sorbonne. Estágio pós-doutoral junto à Università degli Studi di Firenze . Mestre em Direito do Estado pela PUC/RS. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado/ Doutorado) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Advogado e consultor jurídico. Outros textos em: http://www.andersonteixeira.com. DOI: https://doi.org/10.29327/529171.1-2

Anderson Vichinkeski Teixeira 16 lita, como a que muitos defendem, em especial Otfried Höffe (2006). Um constitucionalismo transnacional precisaria conformar-se com as ordens constitucionais existentes, concentrando suas competências em temas notadamente transnacionais, como, por exemplo, Günter Teubner e Andreas Fischer-Lascano (2004) referem o Direito Constitucional transnacional voltado para a solução de conflitos normativos. No entanto, ao Direito Constitucional transnacional seria necessário atribuir um número maior de competências, do que simplesmente a solução de conflitos normativos, pois existem diversos desequilíbrios nas relações internacionais e demandas por inclusão, bem como pelo reconhecimento de direitos, que precisam ser enfrentadas por uma área do Direito que esteja devidamente estruturada. Recorde-se que autores como Anne Peters sustentam que novas demandas globais chamam por um “constitucionalismo compensatório”. Ela menciona (2006, p. 591) três consequências do enfraquecimento das ordens constitucionais nacionais pelos processos de globalização: (1) os Estados nacionais estão sendo progressivamente desconstitucionalizados mediante a transferência de poder e prerrogativas para atores não-estatais característicos da esfera transnacional; (2) a ausência de legitimidade democrática das formas de Direito criadas pelas ações dos agentes que atuam na ordem transnacional; (3) a ausência de mandato democrático no âmbito da governance transnacional. Peters (2006, p. 592) afirma que “a conclusão que se pode tirar de tudo isso, caso se queira preservar um nível mínimo de governança democrática, é a de que devemos, então, mover para além do Estado e estabelecer estruturas democráticas, transnacionais e compensatórias.” Considerando essas diferentes possibilidades de compreensão do fenômeno em objeto, devemos fazer uma breve reconstrução do percurso histórico do constitucionalismo liberal – e, posteriormente, social – desde as origens do Estado moderno, de modo que seja possível, então, melhor compreender o atual estado da arte do fenômeno constitucional transnacional. Tendo em vista que o Estado moderno já se encontrava presente na realidade política, não apenas europeia, mas ocidental, desde o final do século XVII e durante todo o século XVIII, vemos que o passo seguinte fora o processo de transformação desse Estado, originalmente ilimitado e eminentemente político, em um Estado limitado pelo Di-

17 Constitucionalismo transnacional e governança de crises globais reito e, por consequência, constituído com base no Direito. Em outras palavras, foram os ideais liberais presentes nas duas grandes revoluções europeias desse período (Inglaterra, em 1688; França, em 1789) e na Independência dos EUA (em 1776) que corroboraram para a construção de um modelo de Estado de Direito notadamente liberal. Maurizio Fioravanti (2007, p. 26-27) pontuou três princípios que sintetizam os nortes daquela que veio a ser chamada de constituição liberal , i.e., a constituição de um Estado liberal de Direito: (1) princípio da presunção de liberdade, segundo o qual os indivíduos são livres até que a lei determine o contrário, ou seja, aquilo que não é proibido, é permitido; (2) princípio da reserva legal, que se constitui em princípio segundo o qual somente a lei pode limitar ou disciplinar o exercício de direitos individuais; e (3) princípio da constituição como ato que garante os direitos individuais e separa os poderes, estando tal princípio na base estrutural de todas as constituições que se seguiram ao – e se inspiraram no – período de revoluções liberais. Karl Loewenstein (1976, p. 213) bem lembrava que todas as primeiras constituições modernas ocidentais eram de ideologia liberal porque “o telosdo constitucionalismo da primeira época foi a limitação do poder absoluto e a proteção dos destinatários do poder contra a arbitrariedade e falta de medida dos detentores do poder”. Já Fioravanti (1995, p. 118) destaca que, com o advento do Estado liberal de Direito, criou-se o seguinte quadro normativo: “ soberania do Estado removida das pretensões contratualistas dos indivíduos e das forças sociais, por um lado; e autonomia da sociedade civil afastada das pretensões dirigistas dos poderes públicos, por outro lado”. Consequência lógica seria o seguinte raciocínio: “se todas as liberdades se fundam somente e exclusivamente nas leis do Estado, deve-se admitir que existe entãoum único direito fundamental, o de ser tratado conforme as leis do Estado. ” (FIORAVANTI, 1995, p. 125). O esgotamento do modelo liberal em solo europeu ocasionou uma transição, ocorrida no início do séc. XX, para o Estado social de Direito. Todavia, restou, sempre conservada, a ideia de supremacia da lei na resolução dos conflitos sociais, o que implica na sua utilização como instrumento de tutela dos direitos contra o arbítrio. A lei é dotada de tão grande significância porque “é o caminho indispensável para as liberdades. O indivíduo é livre na medida em que age dentro dos limites

Anderson Vichinkeski Teixeira 18 da lei, e esta, por sua vez, é o único instrumento capaz de protegê-lo do arbítrio.” (COSTA, 2002, p. 94). O que há de derradeiramente significativo no constitucionalismo social é a ampliação da ideia de liberdade, deixando de ser pensada apenas como um “não fazer” por parte do Estado (sentido negativo) e passando a ser havida como um “fazer”, i.e., um dever prestacional por parte do Estado (sentido positivo). Ernst Fortshoff (1973, p. 31-33) ressaltou que, paralelamente ao Estado de Direito, estava surgindo uma outra ordem de valor em termos de regulação político-social: o Estado social. Entretanto, a maior contribuição para a Teoria Constitucional do século XX feita pelo próprio Estado social de Direito e, por consequência, pelo constitucionalismo social, parece ser a redefinição da função normativa da constituição dentro de um Estado de Direito: de documento mais político do que propriamente jurídico, passa a ser, então, em especial com as constituições do pós-Segunda Guerra Mundial, documento jurídico dotado de normatividade como qualquer outra lei, mas com a prerrogativa de ser a lei maior de um sistema jurídico. Com isso, supera-se a supremacia da lei e chegamos à soberania da constituição . Fioravanti (2009, p. 5) possui uma definição de constitucionalismo que destaca com propriedade esse processo histórico, pois entende tratar-se de “um movimento do pensamento voltado, desde suas origens, a perseguir as finalidades políticas concretas, essencialmente consistentes na limitação dos poderes públicos e na afirmação de esferas de autonomia normativamente garantidas”. Nicola Matteucci (1998, p. 127), por sua vez, acentua o caráter finalístico do fenômeno: “[C]om o termo ‘constitucionalismo’ geralmente se indica a reflexão acerca de alguns princípios jurídicos que permitem a uma constituição assegurar nas diversas situações históricas a melhor ordem política.” Em suma, seja lá qual for a espécie a qual estamos nos referindo, veremos o fenômeno constitucional exercendo a limitação do poder político e a tutela de direitos fundamentais . Retornando ao nosso contexto histórico de início do século XXI, é incontestável que o Estado nacional se encontra acometido por um processo progressivo de perda de prerrogativas do princípio de soberania, as quais são transferidas para atores que figuram na esfera transnacional e terminam ocupando posição central no âmbito normativo, especializando a jurisdição ou âmbito normativo de acordo com a na-

19 Constitucionalismo transnacional e governança de crises globais tureza da matéria envolvida. Organização Mundial do Comércio, Organização Internacional do Trabalho, as diversas cortes internacionais de justiça especializada ou arbitrais, apenas para citar alguns exemplos, constituem-se em claras representações de transferência de prerrogativas do poder soberano, que outrora residiam no Estado nacional, para esferas transnacionais de regulação normativa ou mesmo de jurisdição. Günter Teubner (2012, p. 14) sustenta que estamos diante de uma new constitutional question , pois o tradicional paradigma nacional não responde mais pelo fenômeno constitucional, visto que os diversos processos de globalização passaram a promover a privatização e a transnacionalização da política. 2 Teubner (2012, p. 19) afirma que “[A]s organizações internacionais, os regimes transnacionais e suas redes estão sendo não apenas juridicizados, mas também passando por um processo de constitucionalização.” Todas essas principais instituições transnacionais surgidas após os anos 1940, em especial após oWashington Consensus , formam aquilo que Teubner chama de uma global societal constitution. Como referido anteriormente, as constituições possuem a função de institucionalizar a limitação do poder político, mas, ao mesmo tempo, à medida que tutelam os direitos fundamentais, também devem constituir toda a sociedade. Cria-se, assim, uma oscilação constante entre regulação política e regulação social, uma vez que contemporaneamente deverá a constituição regular ambas as esferas. Todavia, Teubner (2004, p. 8) destaca que o advento da globalização transferiu para a ordem internacional os polos responsáveis por tal oscilação, uma vez que as influências externas, tanto ao fenômeno político quanto ao social, são constantes e incontroláveis. O autor (2012, p. 21) recorda que diferentemente do conceito de “governo”, sempre decorrente de um poder político instituído, o conceito de governance é definido com base nas intervenções sociais, políticas e administrativas que atores públicos e privados adotam para resolver problemas sociais. A chamada societal governance exerceria, então, o papel de assumir, no âmbito da ordem internacional, muitas daquelas intervenções que eram realizadas internamente pelos Estados nacionais. 3 2 Registre-se que ele fala em privatização da política no sentido de que muitas questões de ordem política que eram decididas pelo Estado nacional agora são objeto de deliberação por parte de estruturas decisórias desvinculadas da matriz estatal e pertencentes à ordem internacional. 3 Para ummelhor estudo do conceito de societal governance , ver Kooiman (2000, p. 138-163).

Anderson Vichinkeski Teixeira 20 Entre os ideólogos do constitucionalismo societal, destaca-se, pela originalidade da tese à época, o sociólogo estadunidense David Sciulli. Partindo do paradoxo do processo de racionalização, que caracterizaria a Modernidade sob a perspectiva weberiana, Sciulli (1992, p. 56-57) questiona quais forças deveriam existir para enfrentar uma deriva evolutiva ( evolutionary drift ) que se faz presente em quatro eixos distintos rumo ao autoritarismo: (1) a fragmentação das racionalidades de ação, tendo como consequências a diferenciação, a pluralização e a compartimentação social das diversas esferas sociais; (2) a predominância da racionalidade instrumental como a única racionalidade em condições de obter reconhecimento em todos os domínios; (3) a progressiva substituição dos processos informais de coordenação social por processos de organização burocratizados; (4) a proliferação de organizações formais nas mais diversas esferas sociais, conduzindo o indivíduo para um processo abrangente de controle absoluto das suas orientações individuais, segundo parâmetros impostos por essas organizações formais. Sciulli (1992, p. 80) focava-se em problemas predominantemente internos aos Estados nacionais e apontava o constitucionalismo societal como suposta única alternativa para essamassive evolutionary drift , por já ter apresentado efeitos no passado e poder ainda ser útil. Tratar-se-ia da institucionalização de procedimentos empiricamente identificados e legitimados pelas próprias esferas sociais (subsistemas sociais, em outras palavras), formando uma vasta e ampla rede de normatividade com diferentes fontes de legitimidade (SCIULLI, 1992, p. 56-57). Questionando os moldes em que Sciulli concebia o constitucionalismo societal, Teubner (2012, p. 41) chama a atenção para o fato de que ele pode acabar agravando o problema que se propõe a resolver, pois tenta eliminar as externalidades negativas dos subsistemas autônomos mediante pressões externas que os forcem a estabelecer meios para suas próprias autolimitações, sem claramente ter a tão necessária institucionalização consolidada em cada subsistema autônomo. A alta complexidade e capacidade de diferenciação funcional da sociedade global demandariam um constitucionalismo transnacional – semelhante em certo modo à versão societal bem ilustrada com a obra de Sciulli – focado em processos internos aos subsistemas sociais autônomos existentes na ordem internacional que sejam devidamente codificados em termos de uma racionalidade que possa ser compartilhada, ainda que minima-

21 Constitucionalismo transnacional e governança de crises globais mente, com os demais subsistemas. Surge, aqui, um ponto que na obra de Teubner (2012, p. 110-111) se mostra fundamental para qualquer concepção de um constitucionalismo transnacional: a codificação binária híbrida. A compreensão de constitucionalismo societal, independentemente da versão que se tome em consideração, implica em uma redefinição da própria ideia de Direito: de uma concepção que, no Ocidente, historicamente esteve vinculada ao poder político, sobretudo poder estatal, com o advento do Estado moderno, vemos que o fenômeno constitucional societal permitiria que o conceito de Direito viesse a ser definido como uma categoria multifacetada e dependente das fontes sociais, econômicas e políticas a lhe atribuir, por um lado, legitimidade e, por outro, efetividade. Até o presente momento ficamos concentrados na formação do constitucionalismo transnacional, mas precisamos trabalhar também a noção de governança global. O chamado constitucionalismo transnacional é um fenômeno objeto de inúmeras pesquisas e que conta com diversas abordagens teóricas possíveis. Todavia, entendemos que o constitucionalismo transnacional pode ser concebido, em termos gerais, como um processo global de afirmação da ubiquidade da existência humana como um bem em si, independentemente de concessões de direitos ou atribuições estatais de sentido/significado, que demanda reconhecimento de direitos não mais vinculados apenas a um Estado nacional específico e que termina redefinindo os objetivos finalísticos do próprio Estado, pois pressiona rumo a integração política internacional e promove, por um lado, diversas esferas transversais de normatividade, enquanto que, por outro, reforça o papel do Estado na proteção interna dos direitos individuais, na afirmação dos direitos culturais e na instrumentalização das políticas globais. Partindo dessa perspectiva, a governança seria o instrumento por meio do qual o constitucionalismo transnacional estaria se afirmando. Independentemente da perspectiva teórica que se assume, há, de fato, um progressivo processo de transferência para a ordem internacional de prerrogativas que, historicamente, eram próprias do Estado-nação. Situações de normalidade mínima permitem que os processos de globalização e as cooperações entre os Estados ocorram sem que os extremos estejam como opções à mesa, isto é, sem o extremo do universalismo

Anderson Vichinkeski Teixeira 22 utópico que crê em uma república mundial e no desaparecimento paulatino dos Estados; sem o extremo dos nacionalismos estatizantes que crê cegamente no Estado como único referencial político e normativo. Na atual crise sanitária, aos Estados resta a definição do melhor tratamento interno de questões concernentes comunicáveis com as demais ordens nacionais ou transnacionais, pois o combate a uma pandemia não se limita aos confins territoriais de um único Estado. Ocorre que mesmo essa esfera de autonomia pode ainda ser objeto de crítica por parte da comunidade internacional, a menos que se adote uma posição como a da Coreia do Norte e seja proibido todo e qualquer ingresso de pessoas em seu território durante a pandemia. Crises globais, como a do coronavírus no ano de 2020, demonstram que uma vasta rede de normatividade internacional está em pleno desenvolvimento, formando uma espécie de constitucionalismo transnacional. Torna-se cada vez mais importante normalizar, mediante o Estado de direito, as novas exceções, sejam elas nacionais ou internacionais, mediante um rule of law transnacional. Em artigo publicado muito antes da atual crise, Dominique Rousseau (2006, p. 19) já advertia que “l’état d’urgence, c’est le déséquilibre au profit de l’ordre public.” Mais ainda, l’état d’urgence “favorise un atmosphère sécuritaire et prépare les esprits à recevoir sans s’en apercevoir, sans impression de rupture toute proposition de la République autoritaire et policière.” (2006, p. 26) No entanto, como impedir que “tiranias de exceção” surjam dentro de Estados nacionais presumidos como democráticos e liberais? Como impedir que novas exceções não surjam sempre que outra se encerre? Esse problema maior coloca em evidência a importância de um próximo passo no processo evolutivo do constitucionalismo transnacional: a formação de uma governança global democrática. Ainda recordando Schmitt (2011, p. 23-25), em texto originalmente publicado em 1933, dizia que a Constituição é a “decisão política fundamental” de uma ordem política. Mas qual decisão é fundamental, se muitas matérias são cada vez mais fundamentais? Ocorre que, em um constitucionalismo transnacional, a função da constituição, tipicamente nacional, passa a ser de instrumentalizar a aplicação e efetivação de políticas públicas internacionais, decididas tanto no âmbito regional como supranacional, uma vez que, por uma obviedade prática, não seria possível a qualquer instituição internacional de amplitude global

23 Constitucionalismo transnacional e governança de crises globais garantir a efetividade de suas normas e de suas políticas em todas as regiões do globo terrestre. Ao que conhecemos ainda como “constituição nacional” restaria a função de ser a decisão política fundamentaldaqueladada comunidade política, naquelasmatérias que ainda se constituem em prerrogativas exclusivas dos Estados. Todavia, as comunidades políticas nacionais estariam, cada vez mais, interligadas em um pluriversumde ordens transnacionais, com base em vínculos históricos, culturais e políticos entre os povos, guiados por um princípio de solidariedade. (TEIXEIRA, 2011). Tais vínculos seriam elementos materiais hábeis a fundamentar um modelo de relações internacionais que, como dizia Danilo Zolo (2001), deveria ser policêntrico e multipolar, cujas decisões teriam força normativa e seriam tomadas a partir da negociação multilateral e dos processos de integração regional. Há uma necessária imposição de interesses humanos básicos em face dos próprios Estados nacionais, por uma ordem internacional em progressiva complexificação e especialização funcional. Não mais em uma era de Estados competindo entre si anarquicamente, como Leviatãs uns contra os outros, a ordem constitucional transnacional que assistimos se desenvolver, neste século, demanda cooperação e solidariedade entre os Estados, entre as comunidades regionais, entre os organismos internacionais e, em última instância, entre as distintas concepções de mundo que norteiam os povos. A especialização técnica e científica, juntamente com a complexificação das relações sociais em redes transversais cada vez mais presentes no cotidiano das pessoas e dos povos, possibilitaria a formação de racionalidades compartilháveis e a consequente redução da ideologização4 , esta que acaba, inevitavelmente, contaminando a argumentação ao retirar do discurso a possibilidade de aderência por quem não compartilha das mesmas verdades tidas como absolutas. De outra sorte, sob uma perspectiva de definição substancial de direitos humanos, verifica-se que a abertura sistêmica e a inter-relação funcional das esferas nacionais e transnacionais de normatividade promovem a inclusão de todos aqueles que aceitem regras procedimentais comuns a todos, per4 Para um conceito de ideologia, reportamo-nos ao caráter absolutizante, de “verdade suprema” ( vérité suprême ), ressaltado com precisão por Raymond Aron (1996, p. 201): “Nós chamamos ideologia uma interpretação mais ou menos sistemática da sociedade e da história, considerada pelos militantes como a verdade suprema. ”

Anderson Vichinkeski Teixeira 24 mitindo que todos possam agregar informações sobre possibilidades de tratamento da COVID-19, mas somente o primado da racionalidade científico-instrumental daquela dada ciência dirá qual hipótese é ou não aceitável. Por consequência, a consolidação da transversalidade e da reflexividade como os mecanismos principais de gestão da informação parecem ser processos necessários para a melhor gestão das crises globais. A reflexividade promove o “constrangimento epistêmico” na medida em que qualifica o debate, dando prevalência ao conhecimento especializado, técnico, científico, em detrimento de suposições advindas do senso comum. Quanto à transversalidade, é mecanismo fundamental não apenas para o controle na produção da informação, mas sobretudo para que os dados trazidos sejam avaliados em sua dimensão de veracidade, de factibilidade, isto é, para que os dados aportados possam ser confirmados em experimentos semelhantes por outros pesquisadores. Enfim, a dimensão global das novas crises demanda soluções que se mostrem em condições de superar os tradicionais paradigmas estatalistas e promovam uma verdadeira governança global democrática. Referências ARON, Raymond. Les désillusions du progrès. Essai sur la dialectique de la modernité. Paris: Gallimard, 1996. COSTA, Pietro. Lo stato di diritto: un’introduzione storica. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (orgs.). Lo stato di diritto. Teoria, storia, critica. Milão: Feltrinelli, 2002. FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di storia delle costituzioni moderne: le libertà fondamentali . Turim: Giappichelli, 1995. FIORAVANTI, Maurizio. Stato e costituzione. In: FIORAVANTI, Maurizio (org.). Lo Stato moderno in Europa : istituzioni e diritto. 7. ed. Roma; Bari: Laterza, 2007. FIORAVANTI, Maurizio. Costituzionalismo. Percorsi della storia e tendenze attuali . Roma; Bari: Laterza, 2009. FORSTHOFF, Ernst. Stato di diritto in trasformazione. Milão: Giuffrè, 1973.

25 Constitucionalismo transnacional e governança de crises globais HÖFFE, Otfried. Justiça política. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. KOOIMAN, Jan. Societal Governance: Levels, Models, and Orders of Social-Political Interaction. In: PIERRE, Jon (ed.). Debating Governance: Authority, steering and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000. p. 138-163. LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Barcelona: Ariel, 1976. MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad: historia del constitucionalismo moderno . Madri: Trotta, 1998. MORTATI, Costantino. La costituzione in senso materiale. Milão: Giuffrè, 1998. PETERS, Anne. Compensatory Constitutionalism: The Function and Potential of Fundamental International Norms and Structure. Leiden Journal of International Law, v. 19, p. 579-610, 2006. ROUSSEAU, Dominique. L’ état d’urgence, un état vide des droit(s). Revue Projet, v. 2, n. 291, p. 19-26, 2006. SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución . Madri: Alianza, 2011. SCIULLI, David. Theory of Societal Constitutionalism. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria Pluriversalista do Direito Internacional. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Qual a função do Estado constitucional em um constitucionalismo transnacional? In: STRECK, Lenio; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson (orgs.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Anuário do Programa de Pós-Graduação da UNISINOS. v. 9. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 9-32. TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Direito público transnacional: por uma compreensão sistêmica das esferas transnacionais de regulação jurídica. Novos Estudos Jurídicos , v. 19, p. 400-429, 2014. TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Constitucionalismo transnacional: por uma compreensão pluriversalista do Estado constitucional. Revista de Investigações Constitucionais, v. 3, p. 141-166, 2016.

Anderson Vichinkeski Teixeira 26 TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. La méthode en droit constitutionnel comparé: propositions pour une méthodologie constitutionnelle comparative. Revue du Droit Public et de la Science Politique en France et a l’Étranger , v. 135, n. 1, p. 217-234, jan./ fev. 2019. TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski; CALDAS, Roberto Correia da Silva Gomes. Gobernanza glocal/global deliberativa hacia la normativización democrática: la necesidad de legitimidad en compatibilización de las medidas pandémicas de excepción vs. derechos humanos. Opinión Jurídica , v. 19, n. 40, p. 393-419, 2020. TEUBNER, Günther; FISCHER-LESCANO, Andreas. Regime-Collisions: The Vain Search for Legal Unity in the Fragmentation of Global Law. Michigan Law Journal of International Law , v. 25, p. 999-1045, 2004. TEUBNER, Günther. Societal constitutionalism: alternatives to Statecentred Constitutional Theory. JOERGES, Christian; SAND, Inge-Johanne; TEUBNER, Gunther (eds.). Constitutionalization and Transnational Governance. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 3-28. TEUBNER, Günther. Constitutional fragments: Societal constitutionalism and globalization. Oxford: Oxford University Press, 2012. ZOLO, Danilo. Cosmopolis . Milão: Feltrinelli, 2001.

27 GARANTIAS E PROCESSO PENAL NA ERA DA TECNOLOGIA Miguel Tedesco Wedy1 Introdução Os notáveis avanços tecnológicos da sociedade de risco estão a aprofundar os mecanismos de invasão da privacidade e de obtenção de prova por parte do Estado. Pode-se afirmar que nunca houve, em momento algum, dentro da democracia, maiores possibilidades de invasão da intimidade e restrição dos direitos fundamentais do que nesse momento histórico. E isso impacta ainda mais em sociedades em desenvolvimento, em que se observa, de maneira mais clara, as disparidades entre órgãos de investigação e acusação e de defesa. Essa desigualdade repercute nos direitos fundamentais e, com o amplo uso da tecnologia e da globalização, pode se aprofundar. Daí a relevância de se atentar para as peculiaridades do Brasil, que não possui uma efetiva igualdade de armas entre os órgãos de investigação, acusação e defesa. Essa ausência de igualdade se reflete no sistema penal e carcerário, de forma mais impactante. Impõe-se, pois, indagar acerca da origem dessa desigualdade. No Brasil, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, somos um País com mais de oitocentos mil presos, dos quais cerca de 40% são presos provisórios, sem julgamento. Em alguns Estados, como o Ceará, o número de presos sem julgamento chegou a 66%. Nos Estados Unidos esse número é de cerca de 20%. Somos um país em que 64% dos presos são afrodescendentes e 60% são analfabetos ou semialfabetizados. A taxa de ocupação dos presídios é de cerca de 197%. Faltam quase trezentas mil vagas e, em 1 Decano da Escola de Direito da Unisinos. Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Advogado Criminalista. O presente artigo é um resumo da palestra apresentada no evento e um desenvolvimento de trabalho apresentado no V Seminário Nacional – Tutelas à Efetivação de Direitos Indisponíveis, ocorrido na Fundação do Ministério Público, em 2019. DOI: https://doi.org/10.29327/529171.1-3

Miguel Tedesco Wedy 28 muitos locais, os presos são amontoados em condições absolutamente violadoras das normativas internacionais acerca do tema. Entre 1994 e 2010, a população brasileira cresceu cerca de 29%. O número de presos, porém, cresceu cerca de 400% nesse período. Entre 2005 e 2016, o Brasil dobrou o tamanho da população carcerária. Os dados sobre violência, porém, não diminuíram. Mais prisões não geraram menos crimes. Pelo contrário, fizeram aumentar o crime. O notável é que as prisões aumentaram num momento de desenvolvimento econômico e de diminuição das desigualdades sociais. Para os mais pobres e afrodescendentes, em geral, nunca houve ineficiência do sistema penal, caso queiramos relacionar eficiência com punição. O sistema sempre puniu e executou as penas. Para os criminosos de colarinho branco, sim. O sistema era ineficiente. Nos últimos anos, ao lado de profundos avanços tecnológicos e normativos em matéria de meios de obtenção de provas, tais como colaboração premiada, infiltração de agentes e infiltração virtual, ação controlada, interceptações telefônicas e telemáticas, captações ambientais, observou-se também prejuízos, em matéria de algumas garantias, como a violação da presunção de inocência, decorrente da execução provisória da pena, a prodigalização de prisões estribadas em fundamentações genéricas, como a ordem pública, com o propósito de se obter colaborações premiadas), o direito de não fazer prova contra si e, especialmente, em matéria de imparcialidade judicial. Desse modo, impõe-se o estabelecimento de uma aporia, com o propósito de que ela possa ser “falsificada”, mais adiante: “os avanços tecnológicos foram relevantes para aprofundar investigações, mas ruins para as garantias em geral, para a estabilidade institucional e para a economia do país.” É possível que ao final do artigo essa aporia seja destruída, mas se impõe que ela seja colocada dessa forma. Impõe-se correr riscos. Não podemos, porém, parar por aí em matéria de ineficiência na legislação brasileira em matéria de garantias. A peculiaridade do Brasil ainda nos impõe ver que cerca de 30% dos presos estão na cadeia por tráfico de drogas e não por crimes mais violentos, como homicídio, roubo, estupro, latrocínio (matar para roubar), sequestro, extorsão mediante sequestro e corrupção grave.

29 Garantias e processo penal na era da tecnologia O sistema está invertido. Ao invés do sistema se preocupar com os crimes violentos e com a corrupção gravíssima, ele se preocupa com um crime que decorre essencialmente da política de proibição, como o tráfico de drogas. Um crime que reforça grupos criminosos em razão dos seus lucros enormes e instaura um “empoderamento” sem precedentes de organizações criminosas. Em nossa pesquisa, suscitamos dois fatores que geraram esse aumento do encarceramento: a política de drogas e o sistema inquisitorial brasileiro, conjugado com o avanço das tecnologias. Primeiro Fator O primeiro fator é a política de drogas, que é um desastre, encarceradora, estigmatizante, e que retira eficiência ao inflar o sistema penal. Quanto menor o sistema penal, mais eficiente, quanto maior, mais ineficiente em matéria de efetividade e de garantias. A Lei 11.343/2006 aumentou as penas para os traficantes (5-15 anos), manteve a punição de usuários (embora sem pena privativa de liberdade) e não foi capaz de cindir as cadeias de comando do tráfico com as baixas esferas. Vimos que a população carcerária dobrou de tamanho depois disso e que os traficantes (em geral pequenos, afrodescendentes e pobres) compõem 30% da população carcerária. Entre 2005 e 2013, o número de traficantes presos aumentou 339%. A lei de drogas continua a ofertar valiosa e barata mão de obra para as organizações criminosas, especialmente dentro dos estabelecimentos prisionais, pois não conseguiu quebrar a relação entre o topo da cadeia de comando e as camadas mais baixas. Também não conseguiu quebrar a relação entre usuários e traficantes no tratamento da matéria, considerando a ambos como criminosos, embora sem aplicar a pena de prisão ao usuário. Assim, seria essencial um redimensionamento da referida lei, para punir mais gravemente grandes traficantes. Do mesmo modo, é preciso uma legislação que instigue a quebra e o rompimento da relação entre usuários (talvez a sua impunidade na esfera penal) e traficantes, e entre traficantes das partes baixas da cadeia de comando (talvez a aplicação de sanções alternativas e um di-

Miguel Tedesco Wedy 30 reito premial mais forte) e as esferas que detém efetivo poder de mando. Sem tal modificação, o que se pode vislumbrar é apenas o empoderamento cada vez mais robusto das organizações criminosas vinculadas ao tráfico. 2 Segundo fator Mas há um segundo fator que vem contribuindo para o aumento do encarceramento: a tradição inquisitorial do sistema processual penal brasileiro e a sua conjugação com os avanços das novas tecnologias. E, aqui, indiscutivelmente, a denominada operação Lava-Jato contribuiu decisivamente, ao sustentar sempre a ideia do juiz como gestor da prova em processo penal, seja na fase da investigação, seja na fase processual, bem como a sua integração com as novas tecnologias em matéria de meios de obtenção de provas. O notável é que a população aplaude mais rigor, mais punição e mais prisões. Os juízes mais duros são os mais populares. Porém, o sistema penal brasileiro tem uma média de reincidência que alcança 70%. 3 Ou seja, há um círculo vicioso: quanto mais se prende, maior é a população carcerária, quanto maior a população carcerária, maior tem sido a reincidência. Quanto maior a reincidência, maior o número de presos e, assim, sucessivamente. A lei impõe ao juiz uma atuação que reforça as agências de controle, especialmente quando se trata do tráfico de drogas. A lei brasileira, em decorrência de nossa tradição romano-germânica, acaba por reforçar o papel de intervenção do juiz no processo penal. E isso é ainda mais potencializado, com o notável avanço das novas tecnologias. E aí se impõe indagar: o que diferencia um sistema inquisitorial de um sistema acusatório? No sistema inquisitorial, os processos são secretos, escritos, não há separação entre acusador e julgador, a gestão da prova está nas mãos 2 Por óbvio que aqui não deve desprezar e esquecer a ineficácia do Estado brasileiro em atender políticas sociais nos locais de risco, um fato também determinante na cooptação de jovens para o tráfico de drogas. Atacar esse problema exige, obviamente, uma atuação multidisciplinar que vá para além de uma base meramente normativa. 3 Dados do Departamento Penitenciário Nacional.

31 Garantias e processo penal na era da tecnologia do juiz, que pode buscar provas diretamente, sem ouvir as partes ou até para reforçar uma das partes. É um sistema que recebe críticas, pois pode gerar um juiz parcial, apaixonado pela tese da acusação ou da defesa e que apenas preside o processo para reforçar a posição que ele quer como vencedora, lançando mão das novas tecnologias. O que se dá, assim, por vezes, é um preconceito de tese, em que o juiz já decidiu antes mesmo de coletar e apreciar as provas. No sistema acusatório (vejam o sistema anglo-saxônico), os processos são essencialmente públicos, orais, com separação entre acusador e julgador e a gestão da prova está principalmente ou totalmente nas mãos das partes , que possuem ampla capacidade de negociação. A crítica que esse sistema recebe é a aparente apatia do juiz, incapaz de buscar a “verdade”, refém das partes. Um sistema que poderia produzir decisões injustas, em razão de que o processo tende a ser vencido pelo mais hábil jogador. Ainda assim, esse é um sistema que parecer produzir um juiz melhor e mais imparcial. Na realidade, nenhum sistema dos dias atuais é totalmente acusatório ou totalmente inquisitório. No Brasil, a investigação pode ser sigilosa, mas, a partir do instante em que toma conhecimento da investigação, o investigado tem acesso aos autos, conforme a súmula vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal. Depois, durante o processo, este é público e não secreto, ao menos para as partes. Além disso, o processo, por sua vez, é de iniciativa apenas do Ministério Público ou da parte acusadora, o que cria uma divisão clara, ao menos do ponto de vista normativo, entre aquele que acusa e aquele que julga. Mais uma característica acusatória do nosso sistema. Há, porém, muito pouca oralidade no processo penal brasileiro. Com exceção do Tribunal do Júri, que julga os crimes dolosos contra a vida, podemos dizer que esse é um princípio cada vez mais irrelevante, especialmente no momento dos julgamentos. As audiências são orais, são ouvidas as vítimas, as testemunhas, os peritos, os réus. Porém, via de regra, as alegações finais são escritas e não orais, o que retira grande parte da capacidade de contraditório das decisões. Embora o Código de processo Penal até preveja debates orais e a sentença, logo depois, na práxis, ocorre que a própria defesa acaba por concordar com a substituição dos debates orais por alegações escritas, às vezes só para ganhar

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