O espelho quebrado da branquidade: aspectos de um debate intelectual, acadêmico e militante

... COLEÇÃO NEABI DIGITAL REFAZENDO LAÇOS E DESATANDO NÓS O espelho quebrado da branquidade: aspectos de um debate intelectual, acadêmico e militante Volume 1

... UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS Reitor Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, S. J. Vice-reitor Pe. José Ivo Follmann, S. J. CASA LEIRIA Editora Cristina Gislene Leiria Conselho Editorial Luciana Paulo Gomes Gisele Palma Rosangela Fritsch Anai Zubik Camargo de Souza Isabel Arendt Haide Hupffer Rua do Parque, 470 93020-270 São Leopoldo-RS Brasil ___________________ Telef.: (51)3589-5151 casaleiria@casaleiria.com.br

... COLEÇÃO NEABI DIGITAL REFAZENDO LAÇOS E DESATANDO NÓS O espelho quebrado da branquidade: aspectos de um debate intelectual, acadêmico e militante Volume 1 Adevanir Aparecida Pinheiro CASA LEIRIA São Leopoldo-RS 2014

... O espelho quebrado da branquidade: aspectos de um debate intelectual, acadêmico e militante Editoração Casa Leiria Ficha Catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973) Todos os direitos reservados. A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos, sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura. Foi feito o depósito legal. P654e Pinheiro, Adevanir Aparecida O espelho quebrado da branquidade: aspectos de um debate intelectual, acadêmico e militante. / Adevanir Aparecida Pinheiro. – São Leopoldo, Casa Leiria, 2014. v.1. (Coleção NEABI digital: refazendo laços e desatando nós) Financiado por: Unisinos, CCIAS – Centro de Cidadania e Ação Social e NEABI – Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas. ISBN 978-85-61598-80-8 ISBN da Coleção 978-85-61598-79-2 1. Negros – Identidade racial – Brasil. 2. Educação – Relações étnico-raciais – Brasil. 3. Relações raciais – Brasil. 4. Cultura afrodescendente – Aspectos teóricos e metodológicos. I. Título. II. Série. CDU 316.347

... DEDICATÓRIA A minha mãe Vita Santana Pinheiro, ao meu pai Manoelino G. Pinheiro e aos meus 7 irmãos e meus 16 sobrinhos.

Adevanir Aparecida Pinheiro 9 ... Sumário Prefácio..............................................................................................11 Apresentação .................................................................................. 15 Agradecimentos .............................................................................. 17 Introdução ....................................................................................... 19 Capitulo 1 - Contextualizando o debate: aspectos importantes de uma temática complexa .................................................................. 25 1.1 Revisitando teorias sociais raciais ............................. 28 1.2 Na academia: o silêncio e as reproduções teóricas 35 1.3 Hibridismo, negritude e branquitude ....................... 42 1.4 Ideologia dominante e hegemonia branca .............. 47 1.5 Para superar falácias e a ética enganosa ................... 50 1.6 Buscando novos horizontes ...................................... 52 Capítulo 2 - Florestan Fernandes, Alberto Melucci e Paulo Freire: três espelhos intelectuais ................................................................ 57 2.1 O espelho de Florestan Fernandes .......................... 60 2.1.1 Um espelho de cientista militante ................... 61 2.1.2 “O negro no mundo dos brancos” ................ 66 2.2 No espelho de Alberto Melucci ............................... 73 2.3 No espelho de Paulo Freire ....................................... 78 2.4 Considerações conclusivas do capítulo ................... 90 Capítulo 3 - A importância da reeducação de brancos e negros ............. 93 3.1 Reeducação das relações étnico-raciais e a branquidade ................................................................. 94 3.2 As violências simbólicas no processo educativo .................................................................... 104 3.3 Violência simbólica no campo religioso ............... 108 3.4 Branquidade: por quê? ............................................. 112 3.5 Transdisciplinaridade para pavimentar a reeducação ................................................................ 129 Conclusão ...................................................................................... 137 Referências .................................................................................... 143

Adevanir Aparecida Pinheiro 11 ... Prefácio José Ivo Follmann Ter sido convidado para escrever o prefácio deste livro da Professora Doutora Adevanir Aparecida Pinheiro é motivo de muita alegria e um privilégio para mim, mas, também, sobretudo, um grande desafio. Conheço a Adevanir, ou, a Deva, como todos a chamam em nosso meio, desde meados da década de 1980, quando ela, muito jovem, já militava nas atividades pastorais na Vila Duque, em São Leopoldo, vinda das longínquas terras do norte do Paraná. A sua personalidade decidida, criativa, empreendedora e totalmente apaixonada pelo que faz, me impressionou desde o início. O seu engajamento pessoal pela causa do seu povo afrodescendente e seu jeito muito pessoal de não separar teoria e prática sempre chamaram e chamam a atenção. A construção intelectual que ela faz está profundamente embebida da “real realidade” vivida, como ela gosta de dizer e mostrar concretamente no seu dia a dia. Nesse seu jeito de ser intelectual não acontece a ruptura que muitos tanto lamentam, entre os rumos que a academia e o raciocínio lógico tomaram e a realidade concreta do dia a dia. Ela traz consigo, de forma natural, para dentro do debate acadêmico, o valor do senso comum, as emoções do cotidiano e as percepções militantes, ao lado de uma criativa, consistente e sempre inquieta elaboração teórica. Militante incansável, ela é, sobretudo, uma pessoa humana, grande conselheira e atenta companheira de todos e todas que permanentemente buscam o seu ombro amigo e, por que não dizer, as suas lágrimas solidárias. Isto, no entanto, não a descaracteriza de sua ardorosa busca intelectual em leituras sempre novas dentro da temática que mais a envolve.

12 O espelho quebrado da branquidade As leituras que ela faz são leituras profundamente criativas, onde ela de certa forma “incorpora” as dimensões espirituais militantes das/os autoras/es captando em sua análise aspectos que às vezes permanecem nas entrelinhas dos escritos. As suas análises das/os autoras/es são um esforço de atualização, proporcionando a quem lê, a sensação de uma interlocução pessoal sem a mediação do texto escrito. Durante o seu processo de pesquisa para a tese doutoral não sossegou enquanto não localizasse os escritos de um filósofo que fosse africano e que ajudasse a iluminar as suas ideias a partir de uma percepção e leitura mais genuinamente africana. Teve êxito e com ardor se apropriou de alguns escritos fundamentais de Kwame Anthony Appiah. Satisfeita com este tento, lamentou, no entanto, não ter tido oportunidade suficiente para se libertar da demasiada carga de autores brancos e masculinos e foi visível o seu anseio por trazer para a reflexão as contribuições de pesquisadores negros e, sobretudo, de intelectuais mulheres negras, duas das quais, Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva e Maria Aparecida Silva Bento, estiveram na banca de sua tese. O privilégio que eu percebo, em minha participação através deste prefácio, é o de poder fazer parte de um grande momento na história social de nosso país, protagonizado pelas decididas políticas de ação afirmativa, expressas, sobretudo, nas leis 10639/2003 e 11645/2008, com a pauta da Educação das Relações Étnico-raciais. Tenho a firme crença de que, depois deste momento, a nossa sociedade não será mais a mesma, ou melhor, restabelecerá as suas autênticas raízes de uma sociedade pluri-étnico-racial de verdade e não de mentirinha como vem sendo até os nossos dias. É um privilégio poder, também, ser protagonista deste momento, no qual o “espelho da branquidade” é definitivamente quebrado. O desafio está na permanência fiel e criativa nesta luta, cujo protagonismo central não pode ser senão dos mesmos afrodescendentes. O desafio está em não fugir de algo que muitas vezes é árduo, árido e, por que não, muito controverso, em nossa

Adevanir Aparecida Pinheiro 13 sociedade. Mas o Brasil merece encontrar-se consigo mesmo e nós com ele. O Brasil e nós, juntos, brancos e negros, não podemos perder esta oportunidade! Parabéns, Professora Doutora Adevanir Aparecida Pinheiro pela sua grande contribuição nesta luta, por fora e por dentro da academia! Parabéns, sobretudo, pela coragem de sinalizar certeiramente que o maior problema a ser resolvido está nos brancos e não nos negros. Boa leitura!

Adevanir Aparecida Pinheiro 15 ... Apresentação José Odelso Schneider1 É com alegria e satisfação que apresento o livro “O espelho quebrado da branquidade: aspectos de um debate intelectual, acadêmico e militante” da doutora e professora universitária Adevanir Aparecida Pinheiro. Havendo-a conhecido mais de perto, como orientador ao longo da elaboração da tese de doutorado, sei da sua determinação e incontida busca por crescente aperfeiçoamento, que prossegue após a conquista do doutorado. Ao longo de suas vivências no norte do Paraná, no Vale do Itajaí de Santa Catarina e no Vale do Rio dos Sinos, ela viveu e sofreu, às vezes com amargura, as relações conflituosas entre a negritude e a branquitude. Por isso, no seu projeto de tese não se preocupava apenas em atender à demanda da academia, mas sim, transformar o tema apresentado à academia como conteúdo a ser ventilado de forma constante no debate intelectual e militante no cotidiano da vida dos brasileiros. Por isso no livro a sair, enfatiza-se aspectos importantes de uma temática complexa, revisitando teorias sócio-raciais, fazendo referência ao silêncio em abordagens da temática da cultura afro-brasileira e africana ou às reproduções destes temas feitas nas academias. Uma preocupação fundamental na obra é chamar atenção para o hibridismo cultural existente nas relações entre negritude e branquitude, em que as academias são desafiadas a abrir-se e avançar no tema da diversidade cultural, buscando subsídios em prol de um convívio equilibrado e construtivo entre as diversas etnias e raças. Cabe, pois às universidades uma tarefa relevante no sentido para superar, sem atritos e curto circuitos a forte presença da ideologia dominante e hegemonicamente bran1 Doutor em Ciências Sociais, Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais PPGCS e do Curso de Especialização em Cooperativismo - CESCOOP, da UNISINOS.

16 O espelho quebrado da branquidade ca, superando éticas enganosas, ainda tão presentes no nosso cotidiano, de modo particular, no que tange à problemática dos afrodescendentes. Para poder mover-se nesta complexa e às vezes tensa problemática, a autora vai buscar subsídios em três autores, que pudessem ajudar a iluminar suas construções teóricas, que são Florestan Fernandes, Alberto Melucci e Paulo Freire. O primeiro valoriza e apresenta uma crítica construtiva nos rumos da sociologia e da ciência e da militância neste contexto. O segundo trata da patologia da branquidade, muitas vezes ainda inconsciente nas intervenções racistas ou discriminatórias dos sujeitos, sendo que nesta discussão a autora também se apóia em Guerreiro Ramos. O terceiro, que é Paulo Freire, propõe uma reflexão sobre as práticas pedagógicas face às abordagens da cultura afrodescendente e seus aspectos teóricos e metodológicos. O livro permite mostrar a relevância da retomada da reeducação racial entre os brancos e afrodescendentes, buscando revelar as situações veladas que levam à geração da violência simbólica, com suas discriminações no cotidiano civil e religioso das pessoas. Por fim, considera-se na obra que para haver avanços, é fundamental uma abordagem transdisciplinar no processo de reeducação das interações raciais.

Adevanir Aparecida Pinheiro 17 ... Agradecimentos Agradeço primeiramente ao meu pai, à minha mãe e aos meus irmãos e irmãs que não chegaram nem a sentir a cansaço da saudade, pois, foi um tempo que mais nos uniu nas minhas idas e vindas de um estado para outro, atuando na pesquisa e nas entrevistas. Quero agradecer a Deus e o meu Santo protetor São Sebastião (Oxóssi) que me fortaleceu na fé e na espiritualidade e na minha identidade. Meu pai Manoelino G. Pinheiro e minha mãe Vita Santana Pinheiro que foram parceiros de idas e vindas na Universidade Estadual de Maringá – UEM. Meus profundos agradecimentos por tão grande alegria a todos os sujeitos afrodescendentes dos três estados que caminharam comigo em diálogo e troca de experiências sobre a negritude e a branquidade. Aos meus vizinhos em especial a Dona Célia Santos e a Liomar dos Santos e Dona Lina Terezinha dos Santos e as crianças da minha rua, pelo apoio e sustento permanentes. A Débora Barbosa Bauermann que foi forte na sua consciência em me auxiliar junto a branquidade mais despreparada da Unisinos. A Graciele Otília que foi o nosso ponto partida e pioneira na construção do Grupo Cidadania e os Avanços junto à população negra leopoldense. A toda equipe do NEABI, em especial à Elisabeth e ao Cristiano, à Renata e todo Grupo de Cidadania. Ao Reitor professor Dr. Pe. Marcelo Fernandes Aquino e ao Vice-reitor professor Dr. Pe. José Ivo Follmann, ao Pró-reitor Acadêmico professor Dr. Pe. Pedro Gomes, todos corajosos companheiros jesuítas por abraçar a inclusão e concretização verdadeira da Temática da Educação das Relações Étnico-raciais. Aos demais jesuítas, Pe. Idinei, Ir. Inácio sempre grandes apoiadores ajudando a desbravar este reconhecimento da população negra em São Leopoldo, questionando também, toda situação da branquidade em discussão. Aos afrodescendentes de Itajaí que sempre foram meus amigos e parceiros nas organizações negras naquela cidade desde 1984, ao Pe. Sérgio Giacomelli, o estimulador da minha formação e estudos, e a organização do Movimento Negro de Itajaí e

18 O espelho quebrado da branquidade as Pastorais Sociais e principalmente ao Grupo Mariama na pessoa da Maria das Graças (Nina), da professora Geni Gonçalves... Entre tantos outros amigos.

Adevanir Aparecida Pinheiro 19 ... Introdução AXÉ DA PAZ! Irá chegar um novo dia, um novo céu uma nova terra e um novo mar E neste dia os oprimidos numa só voz irão cantar. Nesta nova terra o negro não vai ter corrente os índios todos vão ser vistos como gente. Nesta nova terra o negro, o índio, os quilombolas e os brancos todos vão comer no mesmo prato. Uma trajetória de participação ativa em diferentes frentes de lutas sociais e em defesa dos direitos humanos, juntamente com as experiências de aprendizado em comunidades, movimentos sociais e raciais na construção de conhecimentos solidificados ao longo do processo, também no meio acadêmico, forma o horizonte das reflexões que compõem este livro. Foram três os contextos que marcaram esta trajetória de afrodescendente e profissional, militante e estudiosa da temática. Primeiramente, a Região do Vale do Ivaí, PR, foi o contexto da infância e de parte da juventude. É onde se encontram as raízes e os laços familiares, trabalho rural na lavoura da família, séries iniciais na escola, trabalho como empregada doméstica na adolescência, trabalhos comunitários junto com a família, através da Igreja e das pastorais. Confrontada com desafios sociais e culturais desde o berço, o engajamento na luta e a militância é algo que está profundamente entranhado na trajetória. O ideal hoje alimentado e que no início era longínquo e obscuro, foi se concretizando de forma muito natural e consciente ao longo do tempo, através das práticas sociais religiosas, por meio das pastorais e movimentos sociais. Um ideal que aos poucos se constitui e solidifica por meio da participação ativa na comunidade, principalmente delineada pela ação e atuação coletiva.

20 O espelho quebrado da branquidade O segundo contexto foi a Região do Vale do Itajaí, SC. Ali foi oportunizada uma rica oportunidade de participação no Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Itajaí – CDDHI. Isto se constituiu numa contribuição chave no que tange ao aprendizado e à prática da cidadania. Essa referência histórica da trajetória de militante é uma referência fundamental no fortalecimento de uma consciência identitária. Foi uma atuação que propiciou a ampliação de conhecimentos que auxiliam na base de uma formação transformadora. Foi inclusive possibilitada uma atuação animada no sentido de articular trabalhos comunitários com trabalhos de extensão acadêmica, junto à Universidade do Vale do Itajaí – Univali. Tudo isto marca positivamente a formação de uma identidade social, racial, além de importantes experiências e aprendizados em torno dos conhecimentos relacionados aos direitos fundamentais como educação, moradia e organizações sociais. No terceiro contexto, que está na Região do Vale do Rio dos Sinos, RS, ocorreu a vivência de uma realidade totalmente diferente em relação aos outros dois contextos (Paraná e Santa Catarina), podendo-se dizer que os desafios e enfrentamentos raciais antes percebidos esporadicamente, fazem-se duros e cruciais. Neste contexto a atuação se deu inicialmente na comunidade, na organização de meninos e meninas de rua. Foram experiências duras que exigiram muita dedicação e doação. Foi um período de recuo e de novos aprendizados. Nessa realidade, a participação foi restrita às atividades pastorais, que compreendem complexidades sociais e raciais. Além disso, foram anos marcados por dificuldades de participação e falta de oportunidades e condições sociais. Foi neste contexto de atuação e tentativa de resistência, que cresceu a percepção da complexidade de ser um sujeito participativo e emancipado. As intuições, as percepções e as evidências a respeito da indiferença e das resistências do meio branco (da branquidade), tomaram corpo. Dentro da Universidade, desde 1999, foi possível ver de perto a dura realidade a ser desconstruída e a reconstrução a ser feita, com muita força, resiliência e persistência, no

Adevanir Aparecida Pinheiro 21 sentido de enfrentar a complexidade e, sobretudo, os vícios da realidade acadêmica. A oportunidade de participar de uma bolsa de estudo na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos constituiu-se num passo importante. Dois grandes desafios foram percebidos, de imediato, e que deveriam ser enfrentados. O primeiro foi a percepção complexa da falta de condições sociais raciais para os afrodescendentes e os empobrecidos da região leopoldense. O outro foi na percepção aguda das discriminações sociais e, principalmente, as raciais, existentes na sociedade e no meio acadêmico. Com a formação adquirida na graduação em Serviço Social e, sobretudo, nas ciências sociais através do amplo aprendizado nessa linha, cresceram a consciência da “real realidade” repleta de formas sutis de discriminações, muito presentes no cotidiano universitário. Essa experiência e aprendizado nos movimentos sociais negros, pastoral e acadêmico foram essenciais na solidificação de percepções mais qualificadas e sistematizadas para a atuação, em grande parte restrita, inicialmente, ao trabalho junto ao Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o Ecumenismo – GDIREC, gestando juntamente, também, a organização dos afrodescendentes nas beiradas da universidade. Hoje se pode dizer que as principais motivações e o fortalecimento na trajetória de atuação de militância nos movimentos negros e, após, na militância acadêmica, encontraram o seu primeiro solo fértil no trabalho de cadastramento dos locais de culto religiosos e na atuação junto ao grupo de líderes religiosos, na extensão da universidade. É nessa trajetória que foi sendo ampliada nossa percepção do processo de complexidade das relações étnico-raciais presentes em todas as instâncias da universidade. Trata-se de um período de profundas experiências pessoais, profissionais e acadêmicas. A convivência com a realidade acadêmica possibilitou uma formação e uma preparação mais qualificada e fortalecida em termos profissionais. A compreensão das dificuldades relacionadas às questões étnico-raciais no cotidiano aos poucos se apresentou mais amadu-

22 O espelho quebrado da branquidade recida e sistematizada, em meio a duros desafios de ordem racial. De outro lado, deu-se a busca de um entendimento da complexidade e o aprofundamento dos conhecimentos relacionados à temática da relação dos brancos para com os negros. O presente livro contém os principais conteúdos teóricos que resultaram desta busca, envolvendo reflexões que abrangem as dimensões sócio-racial, socioafetiva e socioeducacional. O livro reproduz de uma forma adaptada, reorganizada e, às vezes, sintetizadas, os principais conteúdos do terceiro capítulo da tese doutoral, apresentada e aprovada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, em 2011. O título da tese foi: “IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL E UNIVERSIDADE: A dinâmica da visibilidade da temática afrodescendente e as implicações eurodescendentes, em três instituições de ensino superior no sul do País”, sob a orientação dos professores José Odelso Schneider e José Ivo Follmann. A tese buscou averiguar a visibilidade da Educação das Relações Étnico-raciais – ERER na implantação da legislação concernente, em Universidades de caráter comunitário no sul do Brasil, sendo uma do Vale do Rio Ivaí, Estado do Paraná, uma do Vale do Rio Itajaí, Estado de Santa Catarina e uma do Vale do Rio dos Sinos, Estado do Rio Grande do Sul. Foi um processo de estudos muito envolvente e exigente, cheio de desafios e surpresas. Dele resulta, de forma renovada, a partir das três instituições e seus contextos, a convicção de que a inclusão dos afrodescendentes é uma questão de ética e moral no que diz respeito a direitos sociais e de identidade étnico-racial, frente a uma dívida histórica da sociedade brasileira, que se deixou embalar em seu “berço esplêndido de branquidade”. Opresente livro está organizado emtrês grandes capítulos. Ao longo dos três capítulos aparecem os nomes de diversos(as) autores(as) que foram importantes referências, tais como, entre outros(as), Kwame Appiah, Kabengele Munanga, Guerreiro Ramos, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Maria Aparecida

Adevanir Aparecida Pinheiro 23 Bento, Frantz Fanon, Vron Ware, Florestan Fernandes, Alberto Melucci e Paulo Freire. A referência especial a estes três últimos no capítulo segundo, tem finalidade puramente didática. São nomes que vem sendo colocados como espelho para nos abrir caminhos de reflexões. Alguns destes nomes ainda não foram suficientemente percebidos e conhecidos por dentro das academias, como são alguns nomes das mulheres intelectuais negras. O primeiro capítulo, com o título “Contextualizando o debate: aspectos importantes de uma temática complexa”, retoma algumas discussões chaves presentes na literatura científica concernente à questão racial no Brasil, fazendo alguns registros e identificando algumas interrogações, sempre apontando para horizontes de necessária ruptura com os vícios intelectuais e acadêmicos. O segundo capítulo, com o título “Florestan Fernandes, Alberto Melucci e Paulo Freire: três espelhos intelectuais”, traz para a memória dos leitores e das leitoras, aspectos das contribuições destes três teóricos, que foram consideradas chaves de leitura e entendimento essenciais no processo de pesquisa desenvolvido. O terceiro capítulo, com o título “A importância da reeducação dos brancos e negros”, retoma reflexões sobre o sentido dos processos educativos e a necessária abertura para um horizonte transdisciplinar, bem, como, uma abordagem crítica sobre mecanismos necessários para romper com a indiferença e resistência branca no processo da educação das relações étnico-raciais. O livro conclui retomando alguns resultados da pesquisa desenvolvida na tese doutoral da autora. Entende-se que esta é a melhor forma de fazer encaminhamentos concretos a partir da discussão teórica desenvolvida nos três capítulos. Isto certamente servirá como provocação - no sentido de chamar para frente academias e sociedade.

Adevanir Aparecida Pinheiro 25 ... Capítulo 1 Contextualizando o debate: aspectos importantes de uma temática complexa Em nosso país, discute-se muito sobre comportamentos éticos e sobre violência. Mas há certos tipos de violência, que são as violências simbólicas das quais quase nada ou pouco é falado, que agem de forma invisível provocando mortes históricas, culturais e identitárias. São violências que não chegam a ser percebidas ou vistas por estarem situadas no nível simbólico, como é o caso das representações e práticas raciais no cotidiano. São cometidas verdadeiras barbáries éticas sem haver consequência nenhuma com relação aos autores destas barbáries. Quando se fala em identidade nacional, normalmente é puxado o registro de três origens étnicas: os povos autóctones indígenas, o segmento negro ou afrodescendente e o segmento branco ou eurodescendente. Sem desconsiderar a importância do segmento indígena, que tem a sua complexidade própria, a discussão teórica que é desenvolvida neste livro, se reduz aos dois últimos segmentos, uma vez que ela fez parte do embasamento teórico para a pesquisa da tese doutoral com este foco. Colocando-nos, assim, na estrita relação entre brancos e negros, fazemos referência ao sujeito afrodescendente que, como vítima da internalização inconsciente e forçada de valores brancos, se vê obrigado a adotar para si modelos incompatíveis com seu próprio ser e, mesmo, de seu corpo, o fetiche do branco e da brancura. A nossa interrogação final, no entanto, se voltará para o lado gerador deste fetiche, ou seja, a histórica dominação branca e suas patologias que acabam por engessar a inclusão e a participação da população negra na sociedade e nas academias brasileiras. Ao longo das buscas bibliográficas de todo processo de pesquisa, a história cruel de escravidão que se enraizou na socie-

26 O espelho quebrado da branquidade dade brasileira durante quatro séculos esteve sempre vivamente presente, como também esteve presente o modo antiético e politicamente irresponsável como se deu o processo de abolição. Arrancados de seus territórios, os africanos escravizados foram arrastados para diversos países do mundo e principalmente para o solo brasileiro, onde foram maltratados e açoitados pelos seus senhores, ao longo de séculos, para no fim serem também levados a serem educados forçadamente, sendo-lhes incutidos valores e padrões brancos. Libertos, foram soltos ao destino incerto, jogados à margem da sociedade, das escolas e das academias. Sem nenhum tipo de instrução e autodefesa, os negros escravizados não tinham margem para ações pessoais ou coletivas e, muito menos, escolha para tal. Também os afrodescendentes, mesmo quando “libertos”, viviam em sistemas de tratamento e regimes autoritários, sofrendo, como agravante, uma educação arbitrária e exclusiva do branco. Além de viverem sob a poder do patriarcado. O autoritarismo senhorial da época não permitiu aos afrodescendentes participarem, por exemplo, nem mesmo do direito de voto. Conforme Araújo e Silva, Sem “instrução nem senso de responsabilidade, pois esta só existe quando é possível escolha e ação”, os negros, mesmo na condição de libertos, estavam subjugados a outras restrições, pois “não podiam ser eleitores [...] e era-lhes interditado também exercer qualquer cargo de eleição popular, para a qual a condição essencial era ser eleitor” (COSTA, 1989 apud ARAÚJO e SILVA, 2005, p. 65). Com a derrocada e fragilização do regime escravista, os senhores foram perdendo vigor de ostentação e viram-se obrigados a tecer com relação à população afrodescendente outros tipos de imposições sociais, sobretudo, por meio da educação. A partir daí, a educação passou a não ser mais de responsabilidade dos senhores, mas o próprio afrodescendente tinha que assumir e responder por esta responsabilidade, sem o menor apoio ou cuidado político, num total desamparo e desestímulo. Deste modo, sem serem reconhecidos como sujeitos, os afrodescen-

Adevanir Aparecida Pinheiro 27 dentes foram jogados à própria sorte, destinados a enfrentar o mundo social e, principalmente, educacional, privilégios criados e legados apenas para os de origem europeia, numa postura de descarte das outras origens étnicas, manifestando um mundo de total irresponsabilidade, discriminação, opressão e exclusão. Com o quadro assim desenhado, a lei 10639/2003 e o Parecer/CNE/2004 recobram um sentido vigoroso que perpassa séculos. É tremendamente oportuna a retomada contextual segura e coerente e o debate teórico que lhe é inerente. No presente texto são pincelados alguns aspectos considerados chaves nesta retomada. No mundo da violência simbólica, as próprias estatísticas, repetidas com muita voracidade nos meios de comunicação, acabam reforçando preconceitos e discriminações. Até esse momento, ainda não achamos um ponto mais focado para se falar em dados estatísticos, dos órgãos responsáveis pelos dados numéricos que estão sempre na mídia e na sociedade como um todo, mostrando os índices de rebaixamentos da população afrodescendentes em todos os níveis como: escolas, ensino superior, mercado de trabalho, participação nos grupos de pensadores e formadores de opinião. Diante disso, as percepções registradas no processo de pesquisa têm nos apresentado que as estatísticas, realizadas pelos órgãos dos mais diferentes setores, não têm nos encantado e nem nos causado nenhuma reação mais significativa, além do que está nas grades numéricas das estatísticas apresentadas por todo Brasil, em relação à baixa representação social da população negra em todos os níveis. As repetições das estatísticas parecem ser estratégicas para escamotear outras evidências muito mais concretas e cuidadosamente ocultadas por cientistas, que sempre estão prontos para dar continuidade aos ocultismos nos métodos científicos manipuladores das verdadeiras e “reais realidades” que batem a cada momento nas portas das academias.

28 O espelho quebrado da branquidade Estatísticas são importantes e sempre são instrumentos que ajudam a respaldar políticas, no entanto, a nossa atenção aqui está em poder apontar outras sinalizações ou indicadores que não são visibilizados estatisticamente, e que podem estar impedindo a inclusão verdadeira, escondendo obstáculos ou mecanismos, velados no cotidiano e que ainda não foram suficientemente pesquisados, estudados e analisados. 1.1 Revisitando teorias sociais raciais Sem a pretensão de esgotar o tema, sentiu-se a necessidade de revisitar, ainda que de forma rápida, teorias de autores que marcaram época delineando um contexto racial perverso e excludente. Não foi possível deixar de retomar os cientistas que marcaram o contexto das “teorias sociais raciais” no Brasil e em algumas partes do mundo. Neste sentido, o passeio bibliográfico feito foi para nós como um “quebra cabeça social e racial”, auxiliando no fechamento do marco contextual das teorias sociais raciais. Através das leituras e demais pesquisas bibliográficas, chegamos aos principais autores como: Conde Joseph Arthur de Gobineau,2 Raimundo Nina Rodrigues, Silvio Romero, Oliveira Viana, Euclides da Cunha, entre outros que, certamente, não poderiam ser esquecidos ou deixados de lado. Mesmo que se possa dizer, como de fato disse uma representante do Ministério da Educação3, que “a lei 10639/2003 está acima de qualquer teoria”, deve-se entender que a própria lei faz parte de um grande debate teórico e político que vem de séculos e que culmina nos dias de hoje. Trata-se de um posiciona2 Conde de Gobineau foi um diplomata francês e um dos maiores teóricos do racismo no século XIX. Ensaio da desigualdade das raças humanas (1854) pode ser considerada a bíblia do racismo moderno. Origem das espécies é de 1859. Explicação da História a partir do plano biológico e fisiológico. 3 Leonor Franco Araújo, em palestra no dia 22/11/2009 na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, sobre: “Educação das Relações Étnicorraciais: Desconstruindo Racismo na Universidade”. (A palestrante se referiu às leis 10639/2003 e 11645/2008)

Adevanir Aparecida Pinheiro 29 mento governamental, em vista de políticas afirmativas urgentes e necessárias. Tanto a retomada dos cientistas que debateram e aprofundaram as teorias sociais raciais, e o conhecimento do contexto do final do século XIX e o início do século XX, que forneceram importantes contribuições no amadurecimento teórico, como todo o debate dentro do processo de construção das novas referências legais, que enfatizam a educação das relações étnico-raciais e do Estatuto da Igualdade Racial, constituem chão de referências, constatações e interrogações para o debate aqui desenvolvido. Tudo foi importante apoio para a compreensão e entendimento sobre as implicações da branquitude e/ou branquidade em relação à inclusão e participação dos afrodescendentes na sociedade e no sistema de ensino em todos os níveis educacionais do país. A luta intelectual e científica que se trava, hoje, tem raízes históricas antigas e vem de longe. Os cientistas travaram luta intelectual e científica, no sentido de marcar perpetuamente algumas raças como inferiores, contribuindo muitas vezes para a formulação de “justificações” para o extermínio e exclusão daquelas que os mesmos consideravam inferiores. Os seus resultados teóricos e ideológicos causaram morte cultural e identitária. No que tange às teorias raciais, por exemplo, são evidenciados determinados autores, enquanto outros, com posicionamentos diferenciados são silenciados. Os que mais são repetidos e salientados são os autores racistas, que tem como principal o próprio Gobineau. São autores portadores de perspectivas extremamente autoritárias e racistas em sua época, e disseminaram suas visões de pensadores e cientistas. Uma ciência que tratou dos estudos e pesquisas traçando o rumo das mais importantes teorias sociais raciais como um instrumento de exclusão e opressão a qual atravessou todos os conhecimentos e mesmo se sobrepôs às mudanças paradigmáticas. Gobineau foi o “grande arauto do racismo biológico” e ele afirmava que as causas dos conflitos são provocadas pela

30 O espelho quebrado da branquidade diversidade sanguínea. Para Gobineau (apud ARENDT, 1989, p. 203), “a queda das civilizações se deve à degenerescência das raças. E esta, ao conduzir ao declínio, é causada pela mistura de sangue”. Com essa afirmação o autor chegou a uma classificação absurda e negativa entre as raças. Este conceito parece ter sido o principal ponto de partida nos termos dessas teorias, objetivando marcar o branco como diferente de todas as demais raças humanas e que seria esse o sinal de garantia de raça domesticada para dominar as demais raças, sobretudo em nível mundial. Sílvio Romero4 (1851-1914) é apresentado como um seguidor das ideias gobineauanas. Ele demonstra, por exemplo, ser pouco otimista em relação ao processo de miscigenação da população brasileira; carrega em si uma ideologia que o consagra como discípulo de Gobineau. Como registra Botelho5: Além de ideologia discriminatória baseada no dogma da supremacia das supostas “raças arianas”, o gradual “embranquecimento” da população brasileira foi pensado por seus artífices como um mecanismo normativo capaz de assegurar a coesão ou unidade étnica do país. Como acreditava Sílvio Romero, um dos seus principais entusiastas, a redenção étnica do país se daria da seguinte forma: “O tipo branco irá tomando a preponderância, até mostrar-se puro e belo como no velho 4 ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. 5 volumes. Tomo Primeiro: Contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura brasileira. 3. ed. aum. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943. 1ª. edição de 1888. CUNHA, Euclides. Os Sertões. In: SANTIAGO, Silviano. Intérpretes do Brasil. 3 volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. Vol. 1, p. 169-606. (Disponível em outras editoras também) (Obra de 1902.) 5 BOTELHO, André. Cientificismo à brasileira: notas sobre a questão racial no pensamento social. Botelho é doutor em Ciências Sociais (Unicamp) e membro do Centro de Estudos Brasileiros da mesma universidade. Artigo publicado em 2007. Disponível em www.achegas.net.

Adevanir Aparecida Pinheiro 31 mundo. Será quando já estiver de todo aclimatado no continente. Dois fatos contribuíram largamente para tal resultado: de um lado a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, de outro a imigração europeia”. (BOTELHO, 1978, p. 55) Outra referência deste clássico brasileiro do racismo, que complementa muito bem é apresentada por Seyferth, quando Romero chega a afirmar que: Manda a verdade que uma almejada unidade, só possível pelo mestiçamento, só se realizará em futuro mais ou menos remoto; pois será mister que se deem poucos cruzamentos dos dois povos inferiores entre si, produzindo-se assim a natural diminuição destes, e se deem, ao contrário, em escala cada vez maior com indivíduos da raça branca [...] E mais ainda, manda a verdade afirmar ser o mestiçamento uma das causas de certa instabilidade moral na população pela desarmonia das índoles e das aspirações no povo, que traz a dificuldade de formação de um ideal nacional comum. (ROMERO, 1949, p. 294-296 apud SEYFERTH, 1996, p. 51) Ao resgatar as marcas científicas no mundo da ciência racial, encontramos alguns cientistas que projetavam outra visão mais humanizada, entre eles deve ser destacado o cientista Joaquim Nabuco.6 Este autor foi um dos abolicionistas que não admitia o tráfico de escravos já em 1871. Assevera o autor que 6 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. In: SANTIAGO, Silviano. Intérpretes do Brasil. 3 volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. Vol. 1, p. 3-167 (obra de 1883).

32 O espelho quebrado da branquidade Em 1850, queria-se suprimir a escravidão, acabando com o tráfico; em 1871, libertando desde o berço, mas de fato depois dos vinte e um anos de idade, os filhos de escrava ainda por nascer. Hoje quer-se suprimi-la, emancipando os escravos em massa e resgatando os ingênuos da servidão da lei de 28 de setembro [de 1871]. É este último movimento que se chama abolicionismo, e só este resolve o verdadeiro problema dos escravos, que é a sua própria liberdade. (NABUCO, 1871, p. 24) A rápida visita feita a alguns expoentes daquele debate passado, de certa forma nos ajudou a entender o que significa o início de uma tragédia social e racial que se apresenta de forma complexa e constrangedora na sociedade brasileira e em outras partes do mundo. Conforme assevera Fernandes (1978, p. 16), “[mesmo] os abolicionistas mais íntegros e tenazes não puderam ser seus porta-vozes válidos”. A nosso ver, este processo fortaleceu as bases ideológicas de alguns cientistas e fragilizou as bases ideológicas de outros que poderiam estar evitando o enraizamento dessas marcas prejudiciais em toda humanidade. Os métodos científicos das teorias aqui apontadas vieram desde então, provocando possivelmente um aprendizado educativo, focados nos sentimentos e convicções racistas dos cientistas brancos profundamente equivocados com a visão étnica da humanidade. Desses autores, podem-se sistematizar aqui as teorias que marcaram sociológica e antropologicamente o final do século XIX e o início do século XX. Tais teorias têm suas bases focadas no idealismo de um projeto delineado pela força simbólica da desigualdade, elaborado por cientistas que definiram suas ideologias cientificas no conceito de raça e também, por que não dizer: sobre a negritude. A retomada aqui sobre os cientistas que marcaram o início das teorias raciais nos possibilitou uma abertura histórica na área da sociologia e da antropologia para entender como foram

Adevanir Aparecida Pinheiro 33 tratadas no seu teor científico e metodológico, e como estabeleceram os espaços de reproduções e ampliações dessas teorias. É de ampla relevância o resgate da contribuição dos cientistas de um passado remoto e o entendimento a que tipo de processo as teorias sociais raciais vieram sendo cotejadas. Denota-se que esses cientistas pareciam estar embebidos de autoritarismos e de racismos perpétuos e celebrados no bojo da ciência. Muitas vezes os próprios cientistas nem tiveram ideia do estrago e problemáticas que estavam se preparando no sentido do esmagamento de culturas e etnias. Um destes conceitos está baseado no conceito de raça. Muitos preconceitos hoje existentes ampliaram as diretrizes das relações sociais e raciais no mundo inteiro. A racialização e o racismo são produtos das ideologias deste contexto de aprofundamento do conceito de raça. Afirma Munanga: Na mistura, as distinções de raças engendram múltiplas castas sociais; finalmente, o sentido aristocrático e o sentido da superioridade da raça cedem lugar à degenerescência democrática e ao senso de igualdade. A raça branca possuía originalmente o monopólio da beleza, da inteligência e da força. (MUNANGA, 1999, p. 43) Muitos outros autores se centraram neste conceito. Elevando o seu grau de deturpações ideológicas, os próprios cientistas se viam como patenteadores dos conceitos postos como benefícios de uma “raça” ou de uma “etnia” sobre a outra. Munanga apresenta uma das essências de Gobineau argumentando que: Essa é essência da filosofia da história de Gobineau. A raça suprema entre os homens é a raça ariana, da qual os alemães são os representantes modernos mais puros. Os po-

34 O espelho quebrado da branquidade vos que não tem sangue dos brancos aproximam-se da beleza, mas não a atingem. De todas as misturas raciais, as piores, do ponto de vista da beleza, são as formadas pelo casamento de brancos e negros. (MUNANGA, 1999, p. 43) As leituras bibliográficas nos propiciaram importantes buscas de aprofundamentos destes cientistas para compreendermos a situação de sofrimento e conflitos causados para toda humanidade e, sobretudo, para a população negra e indígena, principalmente para os brancos que, de certa forma, também sofreram e sofrem com a domesticação da superioridade. As leituras realizadas também nos fizeram descobrir as reações desafetuosas do autor com relação à democracia pensada naquela época. Para ele, esta ciência não lhes era compatível e lhes causava algumas decepções e isso o levou a ser severo em sua ideologia e escrita científicas. Alega Poliakov7 que: Gobineau não fez senão sistematizar, de forma muito pessoal, concepções já fortemente enraizadas na época; o que trazia de novo era, sobretudo a conclusão pessimista, o dobre fúnebre da civilização. Sob pretexto de ciência, exalava assim seus rancores ou decepções de toda ordem; aliás, ele mesmo confessava que esta ciência “era para ele apenas um meio de satisfazer seu ódio pela democracia e pela Revolução”8. (POLIAKOV, 1974, p. 217, grifo do autor) 7 Id., ibid.. 8 Carta ao Barão Von Prokesch-Osten. (Cf. A. Cambris, la Philosophie dês races du comte de Gobineau, Paris, 1937, pp.158-159). Citado em Poliakov, 1974, p. 217.

Adevanir Aparecida Pinheiro 35 1.2 Na academia: o silêncio e as reproduções teóricas A sociologia brasileira e a academia em geral pouco parecem estar atentas às consequências trágicas de tudo isto. E os poucos sociólogos e cientistas sociais brasileiros que fazem análises críticas sérias sobre a questão pouco são lembrados na formação dos profissionais de sociologia. Ao longo do processo da formação acadêmica, foi marcante a constatação de certo desequilíbrio no uso de autores. As consideráveis homenagens e ressuscitações de muitos outros sociólogos importantes como o francês Pierre Bourdieu, Antônio Gramsci - um renomado italiano -, quanto também o famoso italiano Norberto Bobbio, o velho e imortal Max Weber, Émile Durkheim, além do provocante e venerado Karl Marx. Avaliamos as ricas contribuições que todos estes autores apresentam para toda sociedade brasileira e para o mundo. Percebe-se que são fontes de águas “profundas” e às vezes “intransparentes”. Se, no todo, existe um grande desequilíbrio no uso de autores europeus em detrimento de autores brasileiros, é também notável o pouco caso feito para com autores que assumem posicionamentos menos deturpados ou “torcidos” no rumo e conhecimentos extraídos de suas pesquisas em relação às suas teorias raciais, sociais, filosóficas, antropológicas. Podemos citar aqui o famoso Guerreiro Ramos que deixou um rico campo de debate sobre a temática da “branquidade fictícia” ou a “patologia do branco brasileiro”, e, também, Frantz Fanon com a ampla discussão voltada para a “negritude”, entre outros autores negros que marcaram sua época. Fica evidenciado que estes não tiveram a mesma visibilidade científica e teórica da mesma maneira que tiveram alguns outros autores ilustres da mesma época. Não é que não se fala da questão racial. Os negros foram e são objetos de muitos estudos. Trata-se de olhares brancos sobre os negros. Estes sempre estiveram no auge das discussões, tanto no âmbito escolar, acadêmico quanto no social, e, agora

36 O espelho quebrado da branquidade reapareceram com nova força em torno das políticas afirmativas de inclusão racial. Está ausente o olhar sobre os brancos. Ainda hoje, parece que os brancos sempre procuram uma brecha para não assumirem as suas deficiências históricas e patológicas. Este olhar sempre foi silenciado. Muito pouco, ou nada, se encontra na sociologia e na antropologia brasileira com relação a isto. Faz-se necessário reconhecer a realidade e, a partir daí, saber interpretá-la seriamente. Neste sentido, Freire (1986, p. 104) complementa, dizendo que “somos ensinados a descrever, simplesmente, partes limitadas da sociedade, ou a ver através de visões de conjunto distorcidas e, assim, o contato com a realidade nos é vedado”. Toda problemática sistematizada sobre as políticas afirmativas apresenta indícios de que a discriminação e o preconceito de fato não chegam a ser explicitados. Diante desta realidade profundamente complexa, propomos um estudo de investigação e interpretação mais amparada e evidenciada em autores que muito pouco foi discutido e estudado, aqui no caso de Appiah (filósofo africano), objetivando a visibilidade dos sujeitos inseridos e como os mesmos são incluídos neste processo de cidadania brasileira e os conceitos que podem auxiliar no resgate da história que foi duramente estudada à avessa, ou na maioria das vezes nem foi apreciado pelos cientistas da época. Intelectuais afrodescendentes e africanos como, por exemplo, Appiah, Fanon, Aimé Césarie e outros de origem africana e africanos, já faziam parte do mundo intelectual, buscando desconstruir os pré-conceitos ideologicamente influenciados por pensadores intelectuais eurocêntricos, desde o século XIX. As resistências e as perturbações entre ambos (brancos e negros) parecem restringir-se apenas a conceitos como “racismo, cotas, raça, políticas”, entre outros. Para Appiah (2006, p. 33), “[o] racialismo, entretanto, é um pressuposto de outras doutrinas que foram chamadas de ‘racismo’; e essas outras doutrinas têm sido nos últimos séculos, as bases de um bocado de sofrimento humano e a fonte de inúme-

Adevanir Aparecida Pinheiro 37 ros erros morais”. Os próprios cientistas da época não compreenderam a lógica da justiça científica, encarregando-se de aprofundar os conceitos estereótipos, ocultando o verdadeiro sentido e uma cientificidade melhor avaliada. São contextos, de temáticas históricas e, sobretudo, cientistas que ficaram soterrados nos escombros escolares e nos meios acadêmicos, mas que pontuam diversos aspectos relevantes em relação às complexidades raciais existentes nos campos científicos e levantamentos empíricos coletados de forma equivocada em relação às teorias sociais e raciais. Diante disto, hoje, preocupa a forma perversa de como supostos discípulos de cientistas como Gobineau, entre outros, tem atuado no retalhamento do conceito de “raça”, objetivando apresentar o poder da raça branca e superior. A ideia científica parece ser retomada da mesma forma metodológica por intelectuais que são contra o conceito de “cotas”. Para os cientistas conservadores, há que se retalhar o conceito de “cotas raciais” no meio das academias brasileiras, no sentido de não haver a inclusão dos negros através de cotas nas universidades. Este conflito parece se centrar muito mais entre os cientistas mais conservadores, ou entre outros teóricos modernos que passam a dominar o campo científico atual nas academias e que ainda não se dispuseram a rever as mudanças da transdisciplinaridade em vigência. Os afrodescendentes não demonstram preocupações significativas em relação à situação de cotas. Assevera Silva (2003, p. 31) que “não queremos criar uma ‘elite negra’ para nos ‘igualarmos’ à elite branca. As elites, ao longo da história, têm cumprido o papel conservador de garantir para si e para seus descendentes, privilégios das mais distintas naturezas”. Diante da afirmação da autora, podemos citar como exemplo a Lei do Boi que se estabeleceu no RS desde o ano de 1968 até 19859. Uma lei que representou a cota para filhos de 9 A LEI N.º 5.465, DE 3 DE JULHO DE 1968. “Lei do Boi”, exemplo de cotas para não-negros. Esta vigorou até 1985 ou seja por 3 década até ser caçada. É importante saber que essa lei só existiu no RS. Costa e Silva e Tarso Dutra.

38 O espelho quebrado da branquidade fazendeiros gaúchos estudarem. Lembrando que essa lei se estabeleceu apenas no RS, inclusive na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Uma passagem que quase não houve dizer nas academias. Será que é uma forma de acobertar certos tipos de cotas? A nosso ver, assim como o conceito de “raça” foi debatido entre os intelectuais conservadores e progressistas, o conceito de “cotas” parece estar no mesmo patamar de discussão e debate, tanto nas academias quanto também na mídia brasileira. Neste sentido, argumenta Silvério (2002) que, em relação às questões de raça, Guimarães observa que10: a Social Science begins to abandon the interpretive schemes that take racial inequalities as products of actions (discrimination) inspired by attitudes (prejudice) individual to establish himself in the interpretive scheme that became known as institutional racism, or at proposition that there is discrimination mechanisms included in the operation of the social system and function to some extent, the heads of individuals. (GUIMARAES, 1999 apud SILVÉRIO, 2002, p. 156) Embora haja diversas formas de discussão sobre o conceito de cotas como inclusão para os afrodescendentes, as manifestações, as discussões e as demasiadas preocupações se estabelecem muito mais entre os intelectuais brancos do que entre os intelectuais negros, mesmo que também aí haja os prós e os con10 SILVÉRIO, Valter Roberto. Affirmative Action and the Fight Against Institutional Racism in Brazil. Cadernos de Pesquisa. Cad Pesqui. Número 117, São Paulo, nov. 2002. Associate Professor of Department of Social Sciences, University of San Carlos. Tradução em português: “a Ciência Social começa a abandonar os esquemas interpretativos que tomam as desigualdades raciais como produtos de ações (discriminações) inspiradas por atitudes (preconceitos) individuais, para fixarem-se no esquema interpretativo que ficou conhecido como racismo institucional, ou seja, na proposição de que há mecanismos de discriminação inscritos na operação do sistema social e que funcionam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos”.

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