A capoeira joga com a dureza da vida

Casa Leiria SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA O RESGATE DA CAPOEIRA ANGOLA CONECTANDO ETNICIDADE, ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA NEGRA E PROTAGONISMO CULTURAL EM PORTO ALEGRE , Cássio Henrique Silva da Silva

Cássio Henrique Silva da Silva, 46 anos, capoeirista-antropólogo. Iniciou a sua trajetória na Capoeira Angola em 1995 com Mestre Ratinho e foi formado Professor de Capoeira Angola (2016) por Mestre Ratinho na Associação Cultural de Capoeira Angola Rabo de Arraia em Porto Alegre/RS. Doutorando em Antropologia no PPGAS/ UFRGS (2022), Mestre em Antropologia no PPGAS/UFRGS (2019) e Licenciado em Ciências Sociais pela UFRGS (2014). Atualmente é integrante do Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACi) da UFRGS. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia, priorizando a experiência etnográfica e o debate das relações raciais e atuando nos seguintes temas: Ações afirmativas, a aplicação da Lei 10.639/03 sobre o ensino das relações étnico raciais no Brasil, Africanidades e Quilombismo. Desenvolve pesquisa sobre as formas de resistência cultural na Capoeira Angola, e sobre racismo e epistemicídio da população negra.

A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA O RESGATE DA CAPOEIRA ANGOLA CONECTANDO ETNICIDADE, ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA NEGRA E PROTAGONISMO CULTURAL EM PORTO ALEGRE SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4

OBSERVATÓRIO NACIONAL DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL LUCIANO MENDES DE ALMEIDA – OLMA Provincial da Província dos Jesuitas do Brasil Pe. Mieczyslaw Smyda, S. J. Secretário para Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuitas do Brasil e Diretor do OLMA Pe. José Ivo Follmann, S. J. Secretário Executivo Dr. Luiz Felipe B. Lacerda

Cássio Henrique Silva da Silva Casa Leiria São Leopoldo/RS 2022 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA O RESGATE DA CAPOEIRA ANGOLA CONECTANDO ETNICIDADE, ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA NEGRA E PROTAGONISMO CULTURAL EM PORTO ALEGRE SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4

SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL.4 A CAPOEIRA JOGA COMA DUREZA DAVIDA: O RESGATE DA CAPOEIRAANGOLA CONECTANDO ETNICIDADE, ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA NEGRA E PROTAGONISMO CULTURAL EM PORTO ALEGRE Cássio Henrique Silva da Silva Edição: Casa Leiria. Fotos: Cássio Henrique Silva da Silva Rafael Lima (Rafinha) Rogério Machado (Jamaica) Foto da capa: parte do berimbau, instrumento usado para animar a roda de capoeira. Gervanio. iStock by Getty Images. Para citar esta obra. SILVA, C. H. S. Acapoeira joga com a dureza da vida: o resgate da Capoeira Angola conectando etnicidade, estratégias de resistência negra e protagonismo cultural em Porto Alegre. São Leopoldo, RS: Casa Leiria, 2022. (Saberes Tradicionais, 4). Os textos são de responsabilidade do autor. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Catalogação na publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 Silva, Cássio Henrique Silva da S586c A capoeira joga com a dureza da vida: o resgate da capoeira Angola conectando etnicidade, estratégias de resistência negra e protagonismo cultural em Porto Alegre / por Cássio Henrique Silva da Silva. - São Leopoldo: Casa Leiria, 2022. 150 p. (Série saberes tradicionais; v.4). ISBN 978-65-89503-85-9 1. Sociologia – Grupos sociais – Porto Alegre, RS. 2. Grupos sociais – Cultura Afro-brasileira – Porto Alegre, RS. 3. Cultura Afro-br sileira – Capoeira. I. Título. II. Série. CDU316.35(816.5) Silva, Cássio Henrique Silva da S586c A capoeira joga com a dureza da vida : o resgate da capoeira de Angola conectando etnicidade, estratégias de resistência negra e protagonismo cultural em Porto Alegre [recurso eletrônico]. / por Cássio Henrique Silva da Silva. São Leopoldo: Casa Leiria, 2022. (Série saberes tradicionais; v. 4). Disponível em: <http://www.casaleiria.com.br/acervo/ olma/capoeira/index.html> ISBN 978-65-89503-84-2 1. Sociologia – Grupos sociais – Porto Alegre, RS. 2. Grupos sociais – Cultura Afro-brasileira – Porto Alegre, RS. 3. Cultura Afro-brasileira – Capoeira. I. Título. II. Série. CDU 316.35(816.5)

Dedicatória Para Nauê Cassiana Pérola Vinícius

Eu vivo triste nesse mundo Eu vivo triste nesse mundo Sem compreender Por que tanta exploração? Tanta gente sofrendo Muita dor no coração Entra ano e sai ano É o mesmo arrastão Sendo assim dessa maneira A história não muda não Mas quando eu jogo a capoeira Ou eu toco berimbau

Logo vem na minha cabeça O tempo da escravidão E aí você que escuta Aprenda bem essa lição Jogue sua capoeira Sem aceitar a dominação. Mestre Ratinho – Prof. Anselmo da Silva Accurso

11 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA SUMÁRIO 13 INTRODUÇÃO PARTE I – AVOLTA QUE O MUNDO DEU 28 CAPÍTULO 1 – O PROCESSO DE REPARAÇÃO E RECONHECIMENTO DA CAPOEIRA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE 31 Fortalecendo a identidade 36 A capoeira e seu processo de reparação 43 CAPÍTULO 2 – A CAPOEIRA: REPERCUSSÕES POLÍTICAS, ATORES E INTENÇÕES 44 Ao sair do treino de Capoeira Angola no CEVI, em 1996. Três colegas e eu... 44 Uma descrição tensa 47 Estratificação social e ódio racial no Brasil: gênese e atualizações 53 Na pressão: ações políticas, seus atores e intenções 57 A cultura negra e a capoeira em tempos de multiculturalismo PARTE II – NAS RODAS E VOLTAS DA CAPOEIRA 66 CAPÍTULO 3 – VIVENDO A CAPOEIRA HOJE E A QUALQUER MOMENTO 66 Circulando pela cidade na resistência do Movimento Capoeira Angola 74 De que(m) você tem medo? 79 Marginalização e resistência quilombola urbana 84 De pernas para o ar no ciberespaço: o You Tube como expansão da roda de capoeira. 87 A tradição off-line 90 A investigação no ciberespaço 93 Um jogo observante, a capoeira na rede social 96 As mães quilombolas e a capoeira off-line

12 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 104 CAPÍTULO 4 – CAPOEIRA QUE FEZ O POVO SE UNIR E DANÇAR E O AFOXÉ, QUE É A FALA QUE FAZ 104 Conexão com saberes de Mestre Churrasco 108 Cássio Tambor: “Daqui uns anos estaremos formando artistas” 110 A experiência com Mestre Churrasco vista por Cássio Tambor 120 O Rabo de Arraia e Mestre Môa do Katendê 127 Afoxé Amigos de Katendê na UFRGS 131 CONSIDERAÇÕES FINAIS 134 REFERÊNCIAS ANEXOS 140 ANEXO 1: SOBRE O ESPAÇO MULTICULTURAL, EDUCATIVO E COMUNITÁRIO: QUILOMBO DOS MACHADO 141 ANEXO 2: CINE REFLEXÃO DE NOVEMBRO EXIBE O DOCUMENTÁRIO FILHOS DE GANDHY 143 ANEXO 3: OUTRAS FOTOS DO CAPOEIRA PARK E CÁSSIO TAMBOR

13 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA INTRODUÇÃO No ano de 1995, provocado pela frase “Capoeira: Resistência Popular” – slogan1 da camiseta do Grupo de Capoeira Angola Rabo de Arraia, decidi entrar em contato com Mestre Ratinho e dar início à prática da Capoeira Angola. Foi uma imersão em um universo de conhecimento que vai além da atividade física corporal, abrangendo defesa pessoal e arte através da musicalidade, da dança e da poesia, alguns dos elementos que compõem o ritual da roda de capoeira. Além do mais, eu estava impulsionado pelo contexto cultural que colocava em evidência e rememorava fatos históricos para falar sobre a negritude no Brasil e destacava o marcante fato ocorrido no Brasil, quando Império Colonial, em 20 de novembro de 1695, o assassinato de Zumbi dos Palmares, tal como destaca Galeano (1996): Os soldados cravam a cabeça na ponta de uma lança e a levam para Recife, para que apodreça na praça e os escravos aprendam que Zumbi não é imortal (GALEANO, 1996, p. 316). Era contagiante a efervescência do momento e o que me causava, e uma das motivações era a consolidação, naquele momento, da data de 20 de novembro como uma data nacional para celebrar o Dia Nacional da Consciência Negra. Além disso, era o tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, o que mobilizava a marcha nacional de celebração da memória de Zumbi e de reivindicações dos movimentos sociais negros. Ao mesmo tempo, causou-me forte estímulo ser convidado a participar de um grupo de estudo organizado pelo Mestre Ratinho. O grupo de estudo reunia-se semanalmente no CEVI para realizar leituras e reflexões sobre autores e autoras de obras que abordassem a história e manifestações artísticas da negritude no Brasil e no mundo. 1 Slogan (slôgan) sm (t. ingl) Breve fórmula, usada em propaganda para anunciar um produto, marca, etc. Cf. MINIDICIONÁRIO da língua portuguesa, São Paulo: Melhoramentos, 1992. p. 481.

14 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 Os encontros do grupo de estudo sempre chamaram a atenção pelo caráter subversivo na reivindicação por reparações acerca da representatividade negra em inúmeros temas da vida cotidiana e na agenda política nacional e por seu protagonismo na produção de conhecimento acerca da história sobre as vítimas do tráfico negreiro e seus desdobramentos. Anos depois, esses movimentos nacionais de pleito de reparação histórica e reconhecimento cultural impulsionaram estudos, pareceres e a promulgação da Lei nº 10.639/2003, aprovada oito anos após essa movimentação intensa de iniciativas autônomas e paralelas ao ensino formal que já o faziam por conta própria. O encontro com a Capoeira Angola e suas práticas de resistência despertou-me o interesse em cursar o ensino superior. Assim sendo, no ano de 2009 ingressei no curso Licenciatura em Ciências Sociais da UFRGS. Considero importante destacar que desde o início da graduação procurei colocar a capoeira como tema principal dos trabalhos nas disciplinas e, desse modo, estimular e fortalecer o interesse, o acesso e o vínculo com a Universidade entre capoeiristas e demais pessoas engajadas, como eu. Portanto, a reivindicação acerca da temática da negritude na escola básica e cursos e disciplinas das universidades me acompanhava antes mesmo da entrada na universidade. E, conforme o esperado, era diminuta a representatividade da temática da negritude. A temática da negritude ainda é pouco presente e existem poucas disciplinas diretamente intituladas e, vez por outra, está imbricada em bibliografias que envolvem a cultura brasileira ou alguns outros trabalhos que tencionam as emergentes alterações epistemológicas. Compartilho da visão de Nilma Lino Gomes (2017) em: [...] A teoria e a experiência prática são vistas como diferentes formas de viver e de sistematizar o conhecimento do mundo, pois é no mundo que a vida social se realiza. Por isso não cabe hierarquia entre elas. No conhecimento-emancipação há toda uma leitura crítica dos motivos políticos, ideológicos e de poder por meio das quais a dicotomia entre saber e conhecimento foi construída. Ele tem conhecimento dessa dicotomia; porém, não se limita a ela. Antes, tenta ultrapassá-la (GOMES, 2017, p. 59), Em 2016, já licenciado em Ciências Sociais, fui curador do projeto Cine Reflexão em parceria com o Museu de PortoAlegre Joa-

15 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA quim Felizardo. O objetivo dessa parceria foi intensificar a presença de visitantes negros e não-negros de classe popular aos museus. Ao mesmo tempo, pressionar as instituições acerca da representatividade e do protagonismo negro em espaços de poder e produção de conhecimento. [...] Um museu sobre e para o negro, sobretudo para a sociedade abrangente, deve tratar das questões históricas, sociológicas, artístico-culturais e políticas, no sentido de educação para a cidadania e educação patrimonial levando-se em conta a complexidade da cultura negra (afro-brasileira) e suas dimensões regionais, porém vinculadas às redes sócio- históricas relacionadas com a diáspora africana, sem ficar preso à herança histórico-cultural colonialista de percepção eurocêntrica (BITTENCOURT JUNIOR, 2013, p. 23). No estágio docente durante o curso de mestrado emAntropologia Social tive um encontro com a bibliografia abordada na disciplina Afrodescendência e Cidadania no Brasil Contemporâneo. Foi uma experiência há muito almejada em vivenciar a existência, no espaço universitário, de uma turma de estudantes universitários onde a maioria era composta por pessoas negras, algo bem diverso de minha própria experiência como acadêmico na graduação, em que eu era praticamente único na minha sala de aula ou com um tema visto como exótico em sua abordagem para os demais colegas. Durante o estágio, deparei-me com a condição de porta-voz e pesquisador dos anseios por uma virada acerca da colonização dos saberes no campo científico. Acima de tudo, foi uma potencialização na ênfase à escrita crítica sobre a violência colonial expansiva a partir da modernidade. Encontrava em Nascimento (1980) uma importante referência para animar minhas reflexões: Entretanto, convém insistir neste ponto: as culturas africanas, além de conterem sua intrínseca e valiosa ciência, também oferecem uma variedade de sabedoria necessária, pertinente à nossa existência orgânica e histórica. O mínimo que se pode dizer é que seria um desperdício recusar os fundamentos válidos de nossos ancestrais. Eles são o espírito e a substância do nosso amanhã que os chavões mecânicos europeus e americanos não quiseram ou não foram capazes de construir para as massas africanas do continente e da diáspora (NASCIMENTO, 1980, p. 46).

16 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 A atuação na universidade permitia manter-me refletindo concomitantemente em outros espaços em que se fazem presentes sujeitos formados pela capoeira e comprometidos em desvelar e reparar as injustiças e distorções históricas cometidas contra a resistência e lutas do povo negro. A reflexão propositiva de Nilma Lino Gomes (2017) sintetiza tal possibilidade e exigência com a elaboração de novos conhecimentos e uma nova forma de escrever sobre o povo negro: É possível observar que jovens negros que participam de processos de ações afirmativas tendem a estabelecer relação diferente com sua corporeidade. Há, então, a produção de outro saber sobre o corpo, que passa a ser compartilhado com pessoas de outros segmentos étnico- raciais e a ser notado pelas famílias. De certa forma, há uma ocupação do corpo negro nos espaços que antes não estavam acostumados a lidar com tal corporeidade (GOMES, 2017, p. 115). Portanto, a experiência como estagiário docente na disciplina Afrodescendência e Cidadania no Brasil Contemporâneo (2018/1) expandiu meu interesse em trabalhar com autores que abordam a questão de raça e racismo através de uma perspectiva antropológica. A confluência entre as considerações de autores como Frantz Fanon (1968) e Achille Mbembe (2014), que apontam para a Europa como criação de povos africanos escravizados que protagonizaram a constituição da modernidade ao desempenharem diferentes papéis para a consolidação dos impérios português e espanhol na América Latina, são de extrema relevância, pois o pensamento moderno edificou-se na invenção de um outro tempo evolutivo. Nesse processo de “efabulação”, como propõe Mbembe (2014), “o hemisfério ocidental inventou para si e para os seus o direito de ser gente”, a referência de sofisticação nos costumes, religião, enfim, um ser humano ideal. Através da escravidão negra, o horizonte europeu ampliou-se mundialmente, ao mesmo tempo em que o princípio de raça foi ligado diretamente ao símbolo de um capital e, dessa forma, projetou massivamente negros e seus descendentes a reprodutores de mão de obra para os detentores do capital, garantindo assim o privilégio branco, representado nos diferentes espaços de poder através dos tempos. Apesar disso, sempre houve resistência.

17 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA Convenhamos, então, que a questão entre ocidentalismo, pós- -colonialismo e debate sobre a decolonialidade ultrapassou representações conceituais locais, indicando uma pluriversalização de saberes. Há de surgir, talvez, uma horizontalidade das representações culturais epistêmicas do mundo, contrapondo, de fato, a constante busca de dominação e afirmação vertical eurocentrada, que tenciona, em um nível de saberes, uma pseudossuperioridade, relegando as demais a um nível de pseudoinferioridade. Assim como relatou Nascimento (1980): Há os que situam as tradições africanas do comunalismo como pertencentes à fase pré-capitalista do desenvolvimento mundial, sendo, portanto, tradições arcaicas e peremptas, só merecedoras de rejeição. Esses que assim raciocinam concluem ainda pela ausência de racionalidade ‘científica’ naquele tipo de economia ‘primitiva’, a qual ocorreria ‘espontaneamente’. Devemos rejeitar tais julgamentos que em geral se revestem ou de uma perspectiva crítica equivocada, de um apriorismo dogmático, de um primarismo ingênuo, ou de uma distorção ideológica maliciosa. Em verdade, a dinâmica intrínseca às culturas tradicionais africanas é um dado que não pode ser subestimado. Todo o conhecimento que se tem dessas culturas demonstra o oposto desse imobilismo que lhe querem impingir, como a própria razão de ser da produção cultural africana: sempre foi plástica, de extraordinária riqueza criativa, sem qualquer noção do que fosse xenofobia. Este é um fato irredutível que ninguém pode deixar de reconhecer. Se houve uma quebra de seu ritmo ou algo como uma parada estática e não progressiva em seu desenvolvimento histórico, isto se deve à submissão pelas armas e por todo um aparato ideológico imposto pelo colonialismo às culturas africanas; não constitui, portanto, um fenômeno de imobilismo inerente a elas (NASCIMENTO, 1980, p. 45). Em trabalho de campo com interlocutores do Grupo de CapoeiraAngola Rabo deArraia, de PortoAlegre, fui convidado a participar, no dia 2 de junho de 2018, do grupo de estudos. O grupo ainda se reúne uma vez por mês para realizar leituras e discussões sobre a temática do racismo e a cultura afro-brasileira. O livro Pensar Nagô, do historiador brasileiro Muniz Sodré (2017), foi um entre outros textos abordados no encontro. Com grande satisfação em contatar a obra de Muniz Sodré através de um movimento cultural autônomo

18 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 e organizado como o grupo Rabo de Arraia, percebi a convergência com a temática abordada pelas perspectivas teóricas expostas no texto de Abdias do Nascimento. Muniz Sodré critica severamente a sociedade ocidental quando esta se coloca em uma espécie de nível superior de existência humana, que se expande planetariamente no empuxo do colonialismo e na conseqüente cooptação de outros grupos étnicos pelos modelos já ‘plenamente civilizados’ (SODRÉ, 2017, p. 38). Sinto que nesse encontro é que meu trabalho de pesquisa antropológica foi sendo afetado e influenciado a reforçar o potencial documental e emancipatório que o contato com atores sociais negros propicia à antropologia. Muniz Sodré, em sua proximidade ao pensamento de Fanon, Hall (2003), Mbembe, Mignolo, Nascimento, engajou-se em fortalecer o movimento intelectual e cultural negro a partir do século XX por uma reviravolta epistêmica e o reconhecimento de que a tomada do poder pelos povos injustiçados se dará em conjunto com o poder do conhecimento. Conforme escreveu Sodré: Com a disciplina da ‘história natural’, em que critérios de antropologia física são invocados para classificar as nações humanas, os sábios da época constroem os esquemas que sustentam o racismo vulgar e naturalizam as hierarquias existenciais (SODRÉ, 2017, p. 38). O conhecimento é indiscutivelmente uma forma de poder. Pensar em teoria antropológica conduz à hierarquização entre as diversas culturas espalhadas pelo mundo, potencializada pelos fundadores da antropologia permeada pelo pensamento colonial. Fiquei inspirado pela leitura de Johannes Fabian (2013), “O tempo e o outro: Como a antropologia estabelece seu objeto”, onde o autor alerta: [...] Os breves esboços dos contextos históricos nos quais usos antropológicos do tempo se desenvolveram têm o objetivo principal de recontar uma história cuja conclusão está em aberto, e é aberta e contraditória. A antropologia pode, durante o período compreendido aqui, ter conseguido se estabelecer como uma disciplina acadêmica, mas falhou em se acomodar vis-à-vis a um outro claramente definido (FABIAN, 2013, p. 40).

19 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA Figura 1: Grupo de estudos no CEVI em 2 de junho de 2018. Mestre Ratinho exibindo o livro Da diáspora, eu no espelho fazendo o registro visual e Contramestre Loah do Accara no canto direito. Definições à parte, senti-me provocado a tecer essa reflexão, entrelaçar, mostrar a pertinência das reflexões de Sodré (2017) e demais autores com o apoio do jamaicano Stuart Hall (2003), que deram maior potência à compreensão da capoeira e suas repercussões na vida de capoeiristas em Porto Alegre. Conforme aponta Hall: Em suas formas atuais, desassossegadas e enfáticas, a globalização vem ativamente desenredando e subvertendo cada vez mais seus próprios modelos culturais herdados essencializantes e homogeneizantes, desfazendo os limites e, nesse processo, elucidando as trevas do próprio ‘iluminismo’ ocidental (HALL, 2003, p. 44). Uma questão que considero importante a ser problematizada é a reprodução da ideologia dominante praticada pela antropologia do século XIX, em seu período de formar como disciplina, em relação às diferentes culturas pesquisadas. As escolas de pensamento da antropologia no século XIX consolidaram por muito tempo a ideia de diferentes estágios evolutivos da humanidade que vigoram em sociedades contemporâneas: a selvageria, a barbárie e a civilização. Assim, a crítica de Johannes Fabian (2013) reforçou minha convicção acerca do equívoco na produção de conhecimento cientí-

20 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 fico perante a disseminação do pensamento europeu. O colonialismo ocidental, ao entrar em contato com diferentes culturas invadindo seus territórios, subjugava-as enquanto “primitivas”, colocando-as à própria margem, induzindo o princípio de que era como fazer uma viagem ao passado, ao primitivismo, ao distante. Ainda hoje, na antropologia, o tempo é um artifício fundamental para o trabalho, de onde se afasta de análises processuais e ao mesmo tempo em que dele faz uso para estabelecer distanciamentos e exoticidade do que foi vivido, ou do que foi testemunhado, todavia não deveria ser base científica para as violentas explorações coloniais em nome de uma progressiva inquisição das almas, baseada na exploração cultural, territorial e escravização dos corpos. Como propõe Sodré (2017), Mas essa ideia de ‘humanidade’ – fachada ideológica para a legitimação da pilhagem dos mercados do Sudoeste Asiático, dos metais preciosos nas Américas, e da mão de obra na África – consolida-se conceitualmente, na medida em que contribui para sustentar o modo como os europeus conhecem a si mesmos: ‘homens plenamente humanos’ e aos outros como ‘anthrops’, não tão plenos. O humano define-se, assim, de dentro para fora, renegando a alteridade a partir de padrões hierárquicos estabelecidos pela cosmologia cristã e implicitamente referendados pela filosofia secular. Desta provém o juízo epistêmico de que o outro (anthrops) não tem plenitude racional, logo, seria ontologicamente inferior ao humano ocidental. É um juízo que, na prática, abre caminho para a justificação das mais inomináveis violências (SODRÉ, 2017, p. 14). A inserção do antropólogo ao contato com os nativos, entretanto, criou em alguns aspectos uma relação de afinidade e exigências de respeito mútuo, o que caracterizou um papel importante para a observação participante e o método comparativo entre essas culturas pesquisadas pela dita cultura civilizada. Enfim, o trabalho antropológico atual deveria estar pautado em reconhecer as tensões e limites acerca da ideia de que conhecimento é poder. Haja vista que essa experiência me conduz a interessantes registros e ao encontro com espaços alternativos de fomento à pesquisa e à emancipação e decolonialidade do poder enquanto potentes referenciais epistêmicos.

21 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA Acredito na importância de compartilhar com outros olhares e percepções alguns dados suscitados através dessas interlocuções teóricas e empíricas. Quando em 2017 ingressei no mestrado emAntropologia Social – PPGAS/UFRGS como o primeiro cotista negro no mestrado, fui tomado por grande satisfação em retomar um contato direto com a universidade. Acima de tudo, pulsava em mim a vontade de produzir um documento que contribuísse com a visibilidade do processo de luta e resistência de sujeitos-chave para a popularização da Capoeira Angola em Porto Alegre. No ambiente acadêmico, deparei-me com um clima de tensão e competitividade singular. O PPGAS/UFRGS garantiu bolsa integral para os estudantes autodeclarados negros e indígenas inscritos para o processo seletivo de 2017 pelas respectivas cotas. No entanto, ao iniciar o ano letivo, muitos colegas comentavam sua excelente classificação no processo seletivo valendo-se do princípio meritocrático para desvalorizar a iniciativa de bolsa para os ingressantes via ações afirmativas. Não foi fácil suportar tamanho constrangimento. Eu era o cotista negro e um dos mais velhos da turma. Percebia, constantemente, o desinteresse de alguns colegas em minhas contribuições em sala de aula, percebia que aquele era o momento de colegas mexerem no celular ou cochichar com alguém ao lado. Acima de tudo, gingando em meio a todo esse movimento, me senti surpreso ao vivenciar manifestações de desconfiança e perplexidade também por parte de alguns docentes do programa. Ao apoiar-se no método do “distanciamento epistemológico”, tão caro ao fazer antropológico, uma professora afirmou em aula que eu não precisava fazer antropologia, dando a entender que o lugar que cabia a mim era o do ‘nativo’ prototípico. Durante o curso de mestrado, vivenciei inúmeros episódios que não caberia narrar extensamente, mas o jogo de Capoeira Angola me ensinou que em momentos de tensão na roda é fundamental dar uma “volta ao mundo”.2 Após uma breve introspecção, senti- -me confiante em desafiar uma antropóloga professora do Programa 2 Um capoeirista convida o outro para uma pausa no jogo e caminham em círculo dentro da roda de capoeira para pensar uma nova estratégia ou, até mesmo, acalmar os ânimos então acirrados.

22 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 me posicionando de maneira enfática em uma de suas aulas certo de que a antropologia dá legitimidade, junto ao apoio de minha comunidade, para aprofundar os potenciais heurísticos que a vivência na Capoeira Angola desencadeia no cotidiano de seus praticantes. Questionei a premissa do distanciamento epistemológico considerando que somente um perfil de pesquisador é capaz dessa posição (o homem branco hétero ocidental) e afirmei que todo saber é situado, resta reconhecer e explorar essa posição. Porém, o contragolpe surgiu com o complemento “arrogância” lançado ao ar, a insistência em me situar como potencial objeto e não sujeito de pesquisa era evidente. Esquivei ao silenciar analisando que nessa roda estou na base da hierarquia e os camaradas (quase todos brancos) não ecoavam minha cantoria, tampouco “batiam palmas para esquentar o jogo”. Movido por tal solidão e isolamento no campo universitário, percebi que meu estranhamento epistemológico não se desenvolvia no trabalho de campo, mas em sala de aula. Baseado nesse desconforto, comecei a procurar por trabalhos de destaque na bibliografia antropológica que abordassem o antropólogo afetado através de seu tema de pesquisa e no contato direto com seus interlocutores. Eu me senti convocado a problematizar o “distanciamento epistemológico” cujo pesquisador universal é sempre o mesmo. Ao mesmo tempo, a me questionar: como fica a consolidação de intelectuais engajados? Por que insistir na obrigatoriedade de distanciamento? Considero oportuno enfatizar que meu afeto despertara nas possibilidades e potência de outras conexões entre a reflexão e aportes de intelectuais negros e as experiências vividas, sem que a exterioridade fosse um ônus ou cegueira de quem não enxerga com distanciamento. Acredito na valorização do trabalho de campo, onde o participar e observar seja para impactar formas de elaborar conhecimento e não simplesmente mover-se com exercícios de aproximação e distância sobre a vida comum ou incomum das pessoas. O que estava em questão, ou em dissonância, era a compreensão hegemônica, naquela sala de aula, de que o método antropológico teria um único ponto de partida, do distante à aproximação, ou vice-versa, estabelecendo áreas interiores e exteriores. Isso sempre vem à tona quando estão inseridos pesquisadores/sujeitos que

23 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA escrevem sobre a cultura e historicidade de sua própria vida e o almejado distanciamento epistemológico. Giddens (2012) elucida essa questão: Nos trabalhos tradicionais em etnografia, as narrativas eram apresentadas sem muitas informes sobre os próprios pesquisadores. Isso ocorria porque se acreditava que os etnógrafos poderiam apresentar quadros precisos das sociedades que estudavam. Mais recentemente, os etnógrafos tendem a falar cada vez mais sobre si mesmos e a natureza da sua conexão com as pessoas em estudo. Por exemplo, podem tentar considerar de que maneira a própria raça, a classe ou o gênero afetaram o trabalho, e como as diferenças de poder entre observadores e observados distorceram o diálogo entre eles (GIDDENS, 2012, p. 50). A comparação entre sistema da sociedade que pesquisa e a sociedade que é pesquisada influencia profundamente, através da imersão no trabalho de campo e afinidades diversas, para que o antropólogo seja afetado pelo grupo estudado Goldman (2005). No entanto: como a gente consegue ser afetado produzindo e vendo ganhos de entendimento no distanciamento? O antropólogo insider Marcelo da Silva (2017) dá uma pista: [...] minha crítica se fez presente, por entender que a etnografia em sua visão transformadora, acaba por nos conduzir a uma mobilização nos territórios onde o trabalho de campo impõe o estabelecimento de posicionalidades. No caso da minha, como insider e pesquisador, na formação de redes, de relações e caminhos epistemológicos a serem seguidos/escolhidos para um melhor aproveitamento das potencialidades da pesquisa, requeria um posicionamento (SILVA, 2017, p. 84). A respeito da necessidade de posicionamento, eu não estava sozinho nesse curso de mestrado. Eu me sentia vestido e interligado com minha rede de interlocutores a todo o momento. A conexão com a resistência demonstrada pelos camaradas Jamaica e Rodrigo Machado para garantir seu direito ao território quilombola em Porto Alegre, irmãos batalhadores que a capoeira colocou em minha vida no início da década de 1990 e pude acompanhar um pouco de sua trajetória de luta. O camarada Jean Sarará e seu altruísmo em

24 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 coordenar as rodas de capoeira no Parque da Redenção. O camarada Cássio Tambor e as estratégias de sobrevivência herdadas através da religiosidade, do carnaval e da capoeira. Enfim, ancestralidade, resistência e sobrevivência cultural desenvolvidas em diferentes espaços e por diferentes sujeitos em Porto Alegre me fortaleceram no espaço acadêmico. Sou grato pelo apoio para demarcar meu espaço e reafirmar minha identidade na arena universitária. O som do berimbau surgia nos momentos de conflito e impulsionava os saberes incorporados que a capoeira transporta. Falar sobre os problemas, trazer para a roda, resolver as diferenças mesmo que momentaneamente. Alguns colegas da pós-graduação se interessaram pela Capoeira Angola e se tornaram meus alunos Motirõ Espaço de Cultura e Resistência.3 Foi gratificante sentir o reconhecimento de alguns colegas nesse movimento que se desdobrava em jogar capoeira o tempo todo, não apenas na roda. A aprendizagem da sociedade na universidade deve ser repensada e reformulada para abrir possibilidades na recepção desses novos olhares, interesses e formas de conhecimento e não o contrário, como adequação ao existente, já que, de fato, estão sendo inseridas novas produções de conhecimento junto às ações afirmativas. Portanto há essa contribuição com a universidade através da chegada de novos saberes e conhecimentos, e essa dádiva pode se consolidar com a ação-afirmativa da universidade/antropologia em reconhecer e validar, sem ficar a distância, como em suas pesquisas. Acredito no poder da etnografia pela capacidade de análise e, ao mesmo tempo, o insider, por já ter uma imersão prévia ao seu campo de estudo antropológico, potencializa a capacidade analítica ao realizar conexões entre diversos elementos. Conforme a reflexão de SODRÉ: Não nos move aqui igualmente o conceito de transculturação, pelo qual o antropólogo cubano Fernando Ortiz visava a caracterizar a adoção das formas de uma cultura por outra sem incorrer no risco extremo da aculturação. Isto, para nos mantermos à distância das racionalizações eurocêntricas que costumam fazer os movimentos de fusão de elementos europeus com outros provenientes de culturas tidas como subalternas, seja em termos deliberados, seja “inconscientes”. 3 Localizado na Rua Baronesa do Gravataí – Bairro Cidade Baixa (Próximo ao Quilombo do Areal).

25 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA Em outras palavras, não comungamos com as sobreposições “multiculturalistas” em que o gosto do pensamento pelo ‘exótico’ admite harmonizações, mas sempre sob a égide da lógica hegemônica (SODRÉ, 2017, p. 22). Além do mais, passei pelo processo seletivo, prova, entrevista, dei aulas de sociologia para o ensino médio. No entanto, por algum tempo carreguei comigo o peso de que não deveria estar ali. Foi como se fosse absorvida e compartilhada a crença de que eu não tinha o perfil para pesquisador, apenas para um proveitoso objeto de pesquisa. Organizei a experiência vivida no mestrado e como capoeirista que reflete e oferece à antropologia um modo específico de relacionar-se com objetos de estudo em duas partes desse texto. Nos três primeiros capítulos estou afetado pela antropologia e suas possibilidades de escrever e descrever. Na segunda parte, ofereço um olhar específico que pretende demonstrar um estudo que antropólogos rapidamente diriam ser uma visão de dentro, mas que não se limita a exotizar o desconhecido, mas objetiva tornar algo devidamente conhecido através de seus praticantes, práticas e saberes e extrapolar os limites de uma exotização. As experiências em campo na construção desse trabalho foram enriquecedoras e surpreendentes. Senti-me confiante em cooptar todas as interlocuções almejadas e, para minha surpresa, ouvi “não” em algumas investidas. Foi preciso lidar com a frustração e entender que, sendo homem, negro e angoleiro, algumas pesquisas já ocorreram e eu não me encaixo no perfil da interlocução que almejara. Após uma “volta ao mundo”, percebi a ausência de capoeiristas mulheres em meu trabalho. Eis que entram em cena as mães do Quilombo dos Machado e me confortam o coração e a consciência, eliminando o peso e fortalecendo minha proposta em vislumbrar o poder e efeito transformador da Capoeira Angola também fora da roda. Este trabalho é o resultado de um desejo provocado a partir de reflexões e embates acerca da Capoeira Angola e seus desdobramentos na vida dos sujeitos que dela se aproximam. A análise histórica acerca da resistência quilombola e a capoeira enquanto luta de defesa do território e da dignidade negra se atualiza no feliz encontro com o Quilombo dos Machado e a figura do Jamaica, líder do qui-

26 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 lombo urbano. Em uma bela tarde de sábado, eu desempenhava também o papel de assador e conversávamos em volta da churrasqueira, preparando um salchipão4 para a gurizada comer no fim da roda que estava acontecendo. O líder, Jamaica, um camarada que a capoeira trouxe para minha vida no início da década de 1990, destacava a importância da capoeira nos momentos mais difíceis de sua vida e, olhando com seriedade e firmeza nos meus olhos, declarou: “A capoeira joga com a dureza da vida. Ela é nossa arma pra sobreviver às diversas violências que enfrentamos no dia a dia”. Nesse mesmo momento, solicitei a meu interlocutor, Jamaica, o direito de usar a sua frase nesse relato. Enfim, comparando as astúcias necessárias para reverter adversidades da vida cotidiana, o título dessa pesquisa, amplo, circular, propõe conexões de ideias, conceitos e práticas em que sugiro conhecer a capoeira pelo que ela representa para seus praticantes e vem fazendo e provocando em inúmeras rodas que a atualizam e a projetam como uma conexão multidisciplinar. 4 Referência porto-alegrense para um pão francês com salsichão assado na brasa tipo cachorro-quente.

PARTE I – A VOLTA QUE O MUNDO DEU

28 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 CAPÍTULO 1 – O PROCESSO DE REPARAÇÃO E RECONHECIMENTO DA CAPOEIRA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE Alguns símbolos culturais da diáspora africana foram criminalizados no Brasil logo após a abolição da escravatura. Capoeira e Candomblé, embora proibidos, não deixaram de ser cultuados. Hoje em dia, não são mais criminalizados, mas sim reconhecidos. A capoeira no Brasil vem resistindo desde a marginalização até a institucionalização que veio a consolidá-la enquanto patrimônio imaterial da humanidade. Por isso, considero instigante a investigação acerca da inserção e desenvolvimento da capoeira no universo metropolitano da cidade de Porto Alegre. Através do registro de depoimentos, desde antigos praticantes até os mais novos, busco analisar de que forma a capoeira foi se inserindo no cenário porto-alegrense e, ao mesmo tempo, como absorveu e/ou transformou a vida de seus diferentes atores/as. Através dessa abordagem, quero enfatizar que, com o passar do tempo, a prática da capoeira vem se revelando como uma poderosa tática de luta no processo de libertação do povo negro no Brasil desde os tempos da escravidão. Desse modo, um dos episódios que considero emblemáticos para exemplificar meu apontamento é a Guerra do Paraguai (1864-1870). Conforme apresenta o historiador Júlio José Chiavenatto em seu livro Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai: “[...] para cada soldado branco (nas forças imperiais) havia 45 negros escravos” (CHIAVENATTO, 1979, p. 116). A maioria desses escravos que lutaram por sua vida e liberdade na guerra era de exímios capoeiristas que, na volta ao Brasil, se tornaram livres devido à sua triunfante atuação na guerra. Os po-

29 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA derosos da época, tanto monarquistas quanto republicanos, contrataram alguns desses ex-escravos combatentes para encomenda de crimes contra rivais políticos. Ao se agruparem através da afinidade política, alguns formaram duas conhecidas maltas de capoeiras cariocas: Nagoas e Guayamuns. 1. Nagoas – Ligados aos monarquistas do Partido Conservador, tradição escrava africana que exaltava a abolição declarada pela monarquia; 2. Guayamuns – Ligados aos republicanos do Partido Liberal, tradição mestiça. Badernas em festas populares e comícios. Demonstrado por historiadores como Chiavenatto (1979), Carvalho (1987), Reis (1997), D’Ávila (1998), os capoeiras normalmente eram os protagonistas de tumultos e desordens durante comícios e eleições, portanto a repressão institucional e social em relação à capoeira e aos homens negros se agravou através dessa infeliz marca histórica. Em 1890, ou seja, dois anos após a abolição da escravatura no Brasil, a capoeira entrou para o Código Penal Brasileiro. Assim como a capoeira, o candomblé (prática religiosa de matriz africana) também fora proibido. Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (Decreto número 847 de 11/10/1890, de Capítulo XIII -- Dos vadios e capoeiras) Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena de prisão celular por dois a seis meses. A penalidade é a do art. 96. Parágrafo único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dôbro. Art. 403. No caso de reincidência será aplicada ao capoeira, no grau máximo, a pena do art. 400. Parágrafo único. Se for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena. Art. 404. Se nesses

30 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 exercícios de capoeiragem perpetrar homicídio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor público e particular, perturbar a ordem, tranqüilidade ou segurança pública ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes. Na verdade, a repressão à prática da capoeira acontecia antes mesmo dessa criminalização oficial, conforme Chiavenatto (1979), Carvalho (1987), Reis (1997), D’Ávila (1998), Carvalho Junior (2019). Segundo registro encontrado pelos pesquisadores, consta a prisão de um escravo no ano de 1789 por demonstrar em público movimentos corporais que indicavam o domínio de luta da capoeira nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Porém, a transgressão foi uma estratégia de resistência cultural e os capoeiristas faziam a guarda dos templos de candomblé realizando enfrentamentos quando a polícia tentava interromper os rituais. A capoeira influenciou e acompanhou o desenvolvimento de diferentes manifestações culturais no Brasil. No carnaval do Rio de Janeiro, ela é visível na ginga do mestre-sala e seus floreios nitidamente ligados à Capoeira carioca, assim como no passo do frevo nota-se a envolvente e peculiar ginga da capoeira de Pernambuco. Ao acompanharmos o desenrolar desses fatos, somos levados a crer que o divertimento popular da capoeira adquiriu esse viés criminal devido aos confrontos com a polícia, que reprimia as manifestações de matriz africana nos espaços públicos. De fato, as informações acerca da história da capoeira têm como fonte principal os arquivos da justiça e da polícia. Sem contar, é claro, com a oralidade transmitida pelo saber ancestral. A dura repressão do Estado brasileiro às práticas de matriz africana permaneceu por mais algumas décadas, mais precisamente até a década dos anos 30 do século XX. Ao mesmo tempo, já estava ocorrendo uma mobilização entre intelectuais, líderes religiosos e trabalhadores negros por maior aceitação da capoeira e do candomblé pelas elites e pelo fim da repressão policial. É notável que a marginalização dessas práticas culturais fora intencionalmente criada e disseminada para que houvesse uma fragilização dos focos de resistência negra para a implementação de uma nova ordem social. As considerações do intelectual jamaicano Stuart

31 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA Hall (2003), apesar de direcionar seus apontamentos para a situação social dos negros na América Central e no Hemisfério Norte, nos convidam a comparar esse mesmo fenômeno com o contexto brasileiro. Hall nos provoca a questionarmos as periodizações da cultura popular e sua desvalorização e, ao mesmo tempo, a invasão por parte da cultura dominante, ação que vem através do tempo obscurecendo seus valores mais profundos. Em suas “Notas sobre a desconstrução do popular”, Stuart Hall denuncia que através da Longa Marcha para a modernização foi iniciado um processo de “moralização” das classes trabalhadoras e de “desmoralização” dos pobres, estabelecendo assim uma prática de estratificação condicionada pela “reeducação do povo”. Baseado nisso, é possível repensar e notar a oficialização da religião católica no Brasil e a obrigatoriedade do ensino de educação física nas escolas, a educação física como disciplinamento, guiada pelos exercícios físicos das escolas militares. Neste capítulo aponto para dois aspectos em que a capoeira atua na contramão desse disciplinamento estatal, como fortalecimento de identidade e como parte de uma inversão dos sentidos do que seria patrimônio cultural nos anos 2000. Fortalecendo a identidade Mesmo como prática subalternizada, podemos entender as ações do Estado tencionadas por processos de reconhecimento institucional da capoeira durante o Estado Novo; naquele momento, os capoeiristas dividiram-se em duas vertentes: Capoeira Angola e Capoeira Regional. No ano de 1937, o presidente Getúlio Vargas descriminalizou a capoeira, intitulando-a como arte marcial genuinamente brasileira. Considero oportuno problematizar a questão, porque a incorporação da capoeira à identidade nacional fora entremeada à identidade do colonizador; dessa forma, a brasilidade causa um distanciamento da raiz africana a circunscrevendo como mera prática. Acima de tudo, se a identidade nacional se constituiu de forma a hierarquizar os saberes relegando os saberes dos povos tradicionais

32 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 à cultura popular, ou seja, uma cultura vulgar, de outra parte reduziu os saberes populares a manifestações fragmentárias e práticas. ACapoeira Regional (Luta Regional Baiana), criada por Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, foi aquela que conquistou a simpatia do Presidente Vargas. Mestre Bimba misturou à capoeira golpes de outras lutas e decidiu levar a capoeira aos ringues. Mestre Bimba ministrou seu curso de capoeira para a polícia, exército e estudantes universitários. Por outro lado, a Capoeira Angola fora adotada e difundida por capoeiristas que reivindicaram a ancestralidade africana da capoeira. A historiadora porto-alegrense Débora Hörle D’Ávila (1998) descentraliza a nível nacional a efervescência da capoeira no centro-nordeste do Brasil, demonstrando que aqui em Porto Alegre muita capoeira acontecia: Os registros se ampliam a partir do século XX. Achylles Porto Alegre (1848-1926), em História popular de Porto Alegre, obra editada somente em 1940, faz menção de existir no século passado, na capital gaúcha, a capoeira com os chamados ‘Tinteiros’ e ‘Bagadús’, que eram grupos formados por rapazes do 3º distrito (atuais bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes e São João) e outros. Esses ‘partidos’ enfrentavam-se em conflitos irreconciliáveis, formando batalhões armados de espada ‘gerivá’ que passeavam pelas ruas, acabando sempre suas arruaças em pancadaria”. E, através do relato de João Baptista Godoy Neto (Mestre Baptista), revela que em Porto Alegre, na década de 1950: “um capoeira teria sido assassinado nas zonas de meretrício da Azenha... um marinheiro que foi para a farra e lá pelas tantas se deu a confusão e ninguém conseguia segurar o homem; chamaram a polícia, o Exército e acabaram matando (D’ÁVILA, 1998, p. 30). Em conversa com Mestre Ratinho ela também registra: “Em 1959, Mestre Canjiquinha, aluno de Mestre Aberrê – que foi aluno de Mestre Pastinha, vem ao Rio Grande do Sul, enviado oficialmente pelo órgão de turismo municipal de Salvador no segundo governo de Juracy Magalhães (D’Ávila, 1998, p. 31). Somente em 1966, Vicente Ferreira Pastinha (Mestre Pastinha) liderou o grupo de Capoeira Angola no Festival de Artes Negras em Dakar (Senegal). Este acontecimento se tornou emblemático por ligar a Capoeira Angola à África. Conforme Achille Mbembe, em A crítica da razão negra (2014):

33 A CAPOEIRA JOGA COM A DUREZA DA VIDA [...] A consciência negra na era do primeiro capitalismo emerge em parte de tal dinâmica do movimento e da circulação. Deste ponto de vista, é o resultado de uma tradição de viagens e de deslocações e apoia-se numa lógica de desnacionalização da imaginação; um processo que prosseguiria até meados do século XX e acompanhará a maioria dos grandes movimentos negros de emancipação (MBEMBE, 2014, p. 33). Nesse mesmo período, entre as décadas de 1960 e 1970, ocorreu um processo de folclorização (IPHAN, 2007) da cultura afro- -brasileira, e a Capoeira Angola, o Candomblé e o Samba viraram atrações turísticas. Muitos capoeiristas passaram a compor grupos de shows apresentando-se em teatros e até em filmes como Barravento (1965), do diretor Glauber Rocha. Outro fato interessante foi a homologação, pelo CND (Conselho Nacional de Desportos), do processo de esportivização da capoeira, submetendo-a às regras do boxe. Entre as academias de Capoeira Regional, a maioria ajustou-se a tais regras adequando seus fundamentos aos moldes do CND. Por outro lado, os capoeiristas defensores da capoeira tradicional ficaram à margem desse processo. Nas décadas de 1960 e 1970, dois mestres da capoeira – Canjiquinha e Caiçara – surgiram como figuras importantes no universo da capoeira baiana, ambos mostrando capacidade de se ajustar diretamente às novas exigências do folclore, estilizando as manifestações e, no caso da capoeira, transformando o jogo/ritual em show. A identidade para além da esportivização desses mestres, no sentido de espetacularização do jogo, vai compartilhar o protagonismo da capoeira da Bahia junto aos mestres Pastinha e Bimba. No final dos anos 1980 e início da década de 1990 começava a se formar uma intensa mobilização a nível nacional pelo reconhecimento da capoeira enquanto Patrimônio Imaterial do Brasil. A preocupação central estava na preservação dos fundamentos criados por Mestre Bimba na Capoeira Regional e o resgate e preservação dos fundamentos da Capoeira Angola. No caso da Capoeira Regional, ocorria uma forte onda de comercialização que alterou consideravelmente, em muitos aspectos, os fundamentos criados por Mestre Bimba. A venda de cordas, que têm função semelhante às faixas do karatê, simboliza o status do praticante em

34 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 questão; ao mesmo tempo, se tornou uma fonte exacerbada de lucro para alguns mestres de capoeira que usam seu capital simbólico para além da proposta de conquista e mérito por parte dos discípulos. A questão principal é que esses discípulos tenham poder de compra para obter tal título (graduação). Além do mais, a Capoeira Regional foi incorporando acrobacias da ginástica olímpica entre, a meu ver, outras aberrações. Essa capoeira deturpada estava sendo divulgada em uma novela da Rede Globo de televisão, a novela Malhação. O mais preocupante é que, nesse período, essa capoeira estava sendo divulgada em dezenas de países pelo mundo afora. A prática e culto dos símbolos de matriz africana fortalecem subjetivamente a população negra do Brasil, despertando cidadania e protagonismo social. Por isso, o vínculo às manifestações de matriz africana fortalece a identidade dos sujeitos e sua subjetividade. Como Anselmo da Silva Accurso (Mestre Ratinho) afirma em seu livro Capoeira: um instrumento de educação popular (1995): Certamente, estaremos mais perto de uma sociedade mais justa quando despertarmos para a contribuição do negro para a nossa formação e o papel que sua luta desempenhou nos contornos do homem livre brasileiro (ACCURSO, 1995, p. 125). A tomada de conhecimento de alguns fatos históricos que revelam a luta e resistência de escravizados que fundaram quilombos após fugirem das amarras dos engenhos desperta o poder restaurador fundado em um contato com o núcleo tradicional, influenciando ações sociais que geram significado à vida e sentido à história. Stuart Hall (2003) dá ênfase às “reconstruções das genealogias não-ditas” na busca da tradução dos significados valorativos da cultura africana que simboliza uma viagem de retorno, mesmo se tratando de novos tempos, novos cenários e por novos tipos de sujeitos. A cultura não é estática, está sempre em processo de formação e, com as múltiplas influências da globalização, a questão central não está no ser, mas em se tornar. Observando em trabalho de pesquisa em campo numa comunidade de quilombo urbano, a Comunidade Quilombo dos Machado, os sentidos da capoeira se expandem. O quilombo urbano se localiza na Zona Norte da cidade de Porto Alegre, um instigante contexto em

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