O lugar do saber - Márcia Wayna Kambeba

12 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 1 O RIO QUE CORRE EM MIM É UM RIO DE MEMÓRIAS Tive a honra de nascer na aldeia do povo Tikuna chamada Belém do Solimões e deles receber minhas primeiras lições de vida. O saber estava em cada canto da aldeia. Cresci ao lado de minha avó Assunta e de meu pai adotivo conhecido na aldeia como Baga (padrasto de minha mãe). Ela era uma indígena forte, que sabia impor respeito, professora na aldeia foi com o passar dos anos tornando-se liderança e tendo voz no meio dos Tikuna numa época em que as decisões eram mais dos homens, o ano de 1973. Ela foi uma das primeiras professoras a chegar na aldeia, residiu nesse lugar por 40 anos, casou-se com meu pai adotivo que vivia em Belém do Solimões desde sua infância, nascido na aldeia, filho de minha avó Chinha apelido dado a ela por todos que a conheceram. Ambos Assunta e Baga ensinaram-me grandes lições necessárias à minha formação como pessoa e eu cresci vendo neles um pai e uma mãe, hoje, vivem no plano espiritual. Tive uma infância com pé no chão. Pelas ruas corríamos livres, brincando de “pular saco”, uma brincadeira onde entrávamos dentro de um saco grande e tínhamos que ir de um ponto ao outro e quem primeiro chegasse ganhava a brincadeira. Empoeirados pela terra que nos recebia a alegria era contagiante em nosso rosto. Nos dias de chuva a festa era garantida. Poças de lama eram as preferidas da garotada. Mas, nada superava o banho de rio pela manhã e à tardinha. De longe ouvia as crianças me chamando para nadar, passavam pela frente de casa e com um grito forte diziam: “Ngiã ta aiyagü tatüwa? ” Que em português quer dizer: “vamos tomar banho no rio? ”. Na aldeia, próximo a igrejinha do padroeiro São Francisco de Assis havia um barranco e de lá era possível observar o porto e o rio Solimões caudaloso e corrente levando sedimentos pesados como troncos de árvores e de carona aves e moitas de capim seguiam o curso do rio. Cedo do dia meu pai me levava para esse barranco e de lá era possível contemplar a beleza da natureza. Nos juntávamos a outros Tikuna que também ficavam ali no silêncio de sua contemplação, observando entre tantas coisas o solapamento do rio no outro lado da margem, ao menos, era o que mais chamava atenção ver esse banzeiro ir e vir. No meu pensar de criança parecia estranho e incomodava um pouco ver as pessoas em pé com braços cruzados ou acocadas, totalmente em silêncio. E as águas batiam forte nas canoas que se movimentavam de um lado para o outro como se dançassem ao som do rio. Aos poucos íamos escutando vozes que vinham dos Tikuna que chegavam da pescaria trazendo em suas canoas muitos peixes. E quando eu fazia

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