A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica

81 Escravidão histórica e capitalismo histórico: notas para um debate o modelo de Brion Davis. O mesmo vale para o argumento de Howard Temperley (1980) sobre o antiescravismo oitocentista britânico como um “imperialismo cultural”. Ao examinar as ideias sobre a administração do trabalho escravo nas Américas, suas continuidades e rupturas na passagem da primeira para a segunda escravidão, indiquei como a teoria sobre a gestão escravista elaborada no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos a partir de 1830 respondeu diretamente aos fundamentos ideológicos do abolicionismo, que buscavam legitimar a ordem do trabalho assalariado industrial por meio de seu contraste com a ordem do trabalho escravo (Marquese, 2004). O abolicionismo britânico foi uma força constitutiva essencial da montagem e da reprodução da segunda escravidão, de seu tempo histórico: ao desnaturalizar a instituição e inscrevê-la na história, convertendo-a em um obstáculo ao progresso humano, o discurso e a política abolicionistas forçaram o campo escravista a atuar politicamente a cada passo para defendê-la de forma orgânica e, dessa forma, garantir a continuidade da exploração de seus escravos (Parron, 2015, p. 201-209). Ricardo Salles nos mostra como tudo isso esteve em jogo na Guerra Civil. Como indicativo da necessidade de se revisitar o evento à luz da retomada historiográfica norte-americana recente do binômio capitalismo & escravidão , ele efetua uma resenha excelente de um livro editado, em 2016, por Sven Beckert e Seth Rockman. Com efeito, a deliberada recusa de seus colaboradores em enfrentar questões teóricas de fundo é um claro índice de como a redução da segunda escravidão a uma mera delimitação espaço-temporal (segunda escravidão = século XIX), que reitera o enunciado de que ela foi moderna e economicamente racional (escravidão = capitalismo), não nos levará muito longe. Subscrevo todas as críticas de Salles a esse livro, com exceção da seguinte passagem: “A maior parte dos capitais sulistas estava empatada em escravos, fato que Beckert e Rockman veem como sinal de potência. Isso, entretanto, era indicativo, na verdade, de uma debilidade, uma vez que esses capitais não tinham flexibilidade para se deslocarem para áreas de investimento que, porventura, se mostrassem mais lucrativas”. Minha discordância nesse passo pode eventualmente reforçar o argumento de Salles. Gavin Wright (1978; 2006) mostrou que grande parte da atratividade dos investimentos em escravos na economia norte-americana do século XIX residia justamente em sua flexibilidade espacial, vale dizer, no que os direitos de propriedade em seres humanos permitiam em termos de deslocamento compulsório de trabalhadores para regiões agrícolas de fronteira, mais produtivas, porém distantes dos demais núcleos populacionais. O problema residia em outra esfera, na disjunção entre micro e

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