A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica

80 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica (espaços escravistas coloniais e nacionais caindo um a um, tal como em um efeito dominó gerado a partir das ações pioneiras do abolicionismo anglo-saxão), o que se deu na verdade foi uma profunda descontinuidade, com a cisão das trajetórias dos espaços escravistas antigos e novos ocorrida a partir da reconfiguração das relações de cada qual com a economia-mundo capitalista (Tomich, 2011, p. 81-97). Foi esse argumento simples, porém poderoso, elegante e convincente que nos trouxe até aqui. No entanto, permanece o fato básico de que, se adotarmos uma mirada de longuíssima duração a respeito da milenar instituição escravista, o século XIX acabou sendo, ao fim e ao cabo, o século da emancipação. O abolicionismo pode se constituir como um ponto cego na perspectiva da segunda escravidão. Não é sem razão que Leonardo Marques salienta as dificuldades que Tomich demonstra, em um capítulo publicado em volume editado por mim e por Ricardo Salles, para aquilatar “a importância do abolicionismo na transição da primeira para a segunda escravidão (...). O grande desafio está em como integrar as esferas econômica, política e sociocultural nas narrativas que construímos do processo de emergência e destruição da segunda escravidão”. É justamente esta questão que Ricardo Salles procura enfrentar ao escolher como eixo de seu ensaio o problema da Guerra Civil norte-americana, isto é, a abolição no Estado nacional mais poderoso da segunda escravidão. Antes de avançar nessa discussão, ressalto brevemente outra concordância com Leonardo Marques e que incide diretamente sobre o assunto agora em tela: a possibilidade de incorporar o argumento de David Brion Davis (1975) sobre o caráter instituinte da ideologia do abolicionismo britânico à análise da segunda escravidão. Em um resumo do que escreve Davis, a ideologia antiescravista, parte de uma ideologia humanitária mais ampla, teria sido uma força decisiva na construção da hegemonia social e política dasmiddle classesbritânicas na passagem do século XVIII para o XIX. A ideologia antiescravista, ao diferenciar as várias formas de miséria humana e definir a escravidão como uma aberração moral única, dando assim uma resposta altamente seletiva às formas de exploração humana, tendeu a sancionar a ordem capitalista industrial emergente por meio de um redimensionamento das atitudes perante o trabalho, a disciplina e a liberdade. O combate à escravidão colonial e a imposição da ordem social e política em um mundo metropolitano virado de cabeça para baixo pela “Dupla Revolução” (a Industrial e a Francesa) constituíram, portanto, duas faces da mesma moeda. Ainda que lide com o período anterior a 1787, a interpretação de Christopher Leslie Brown (2005) sobre as origens do movimento abolicionista britânico é compatível com

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