A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica

45 A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia Tudo isso mostra que a velha questão de saber “se a escravidão em si era ou não capitalista” e a indagação do porquê de outras sociedades escravistas não se tornarem capitalistas não são triviais. A possível resposta de Beckert e Rockman a este último ponto está implícita em sua postulação de que “outras sociedades escravistas possuíam poucas características capitalistas” (Beckert; Rockman, p. 3), e é frágil. Estaríamos diante de duas escravidões modernas; uma, a norte-americana, capitalista, e outra, do Brasil e de Cuba, com poucas características capitalistas. Nada menos verdadeiro. Tanto no Brasil quanto em Cuba, a escravidão guardou as mesmas características da escravidão norte-americana: produção de bens primários para o mercado externo, agricultura extensiva, trabalho coletivo e mercantilização da força de trabalho via transformação do trabalhador em mercadoria, motivação pelo lucro, uso de tecnologias avançadas, na produção e nos meios de transporte e comunicação. O fato de a escala de produção e riqueza da escravidão norte-americana ter sido muito maior não autoriza considerá-la distinta. A escravidão norte-americana do século XIX não foi um fenômeno isolado, mas integrou um quadro de expansão de produção de commoditiesque incluiu outras áreas periféricas e semiperiféricas de um sistema mundial capitalista. 14 Nesse sentido, a segunda escravidão foi uma estrutura histórica específica, abrangente e transnacional, que enformou, como fator dominante, as relações sociais no Sul dos Estados Unidos, até 1860, nos Estados Confederados da América, entre 1861 e 1865, no Império do Brasil, até 1888, e em Cuba, até 1886. Nessas áreas, a escravidão renovada constituiu-se em estrutura de relações materiais determinante da formação de classes dominantes regionais e nacionais, as classes senhoriais escravistas, e de classes e grupos sociais dominados e subalternos. Essas classes dominantes, por via de elites intelectuais e dirigentes, estabeleceram sua hegemonia sobre um território e sobre outras classes e grupos sociais, de forma relativamente estável e duradoura, através de visões de mundo e instituições próprias. Formaram, assim, blocos históricos específicos e particulares, isto é, com uma morfologia comum, 14 A qualificação do sistema mundial do século XIX como capitalista, apesar de ser formado também a partir de outras estruturas históricas não-capitalistas, como as formações socais pré-capitalistas europeias, não-capitalistas na África, na Ásia e na América do Sul, e, notadamente, das formações sociais da segunda escravidão, leva em conta duas considerações. Por um lado, o capitalismo foi e é o fator decisivo no desenvolvimento desse sistema. Hipoteticamente, poderia haver capitalismo sem segunda escravidão, mas não poderia haver segunda escravidão sem capitalismo. No mesmo sentido, todas as outras formações sociais não-capitalistas pré-existentes foram por ele profundamente afetadas. Por outro, o capitalismo implicou em uma estrutura específica, expansiva e dissolvente, que tendeu e tende a desagregar as formas não capitalistas de produção, situadas na periferia e na semiperiferia, mesmo quando as modificou e recriou.

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