O lugar do saber - Márcia Wayna Kambeba

14 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 1 das defumações numa aula que faria parte da construção da minha identidade agora na cidade, mas sem perder meus costumes e conhecimentos de aldeia. Outra forma encontrada por minha avó de manter-me conectada à aldeia era voltar comigo anualmente a Belém do Solimões. Lembro que foi difícil adquirir o costume de sentar à mesa e utilizar garfo e faca, mas meu pai nos dizia que era preciso para podermos adentrar o universo da cidade. Então, ainda na aldeia ele nos ensinava. Como ele sabia de tudo isso? Era um homem muito viajado, fazia viagens acompanhando turistas que para nós chamamos “branco”. Abro um parêntese para dizer que a palavra “branco” se refere a aquele que não faz parte de nosso povo ou nação. Não está relacionado a cor da pele. Voltando ao assunto, assim fomos aprendendo maneiras de como nos comportar na cidade, pois, nossa forma de sentar para comer era no chão e utilizando mais as mãos que colher. Outro aprendizado importante que recebi do meu pai foram as narrativas que ele contava. Numa de nossas idas ao lugar de contemplação, ele apontando para o rio me disse: “abaixo do que a gente vê existe uma outra cidade onde moram os encantados das águas, por isso, o boto vira gente na lua cheia, e cada tipo de boto tem sua função no mundo dos encantados. Toda vez que vamos pescar, tomar banho temos que pedir licença a eles. Mas uma vez essa territorialidade do sagrado torna-se visível na sabedoria dos povos da floresta. Esses ensinamentos ainda mantidos hoje, contribuem para constituição de identidade, da noção de pessoa, dos valores e crenças, do coletivo social, da relação com a natureza, do respeito ao outro, do entendimento de partilha, da percepção de cada indivíduo dentro da sociedade indígena e da responsabilidade que cada pessoa carrega consigo. O cacique sabe que a ele foi dado a responsabilidade de conduzir e zelar pelo bem viver do povo. Ao pajé cabe a responsabilidade de ser o médico da nação e proceder com a cura física e espiritual. As mulheres são as guardiãs dos saberes ancestrais e educadoras, os jovens tornam-se guerreiros, as crianças se esforçam na aprendizagem do cotidiano e a vida segue sem pressa e sem tempo de relógio sempre obedecendo o rio e sua ciência. Assim cresci e aprendi ouvindo o silêncio que em mim habita nesse Amazônico chão.

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