Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta
46 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 tese de doutorado, fala do encantamento da sua chegança no território ao se deparar com uma comunidade espiritual feminina kilombola: Mulheres negras, moradoras de uma comunidade espiritual rural, onde todas as integrantes são filhas de um Exu e de uma Preta-velha. Mulheres negras que definiram suas práticas espirituais como universalistas, a par- tir da relação estabelecida entre três matrizes: budismo tibetano mahaya- na, práticas afro-brasileiras – incluindo Umbanda, Candomblé e Batuque – e xamanismo indígena mbyá-guarani (FLORES, 2018, p. 15). Afirmamos que Comunidade Kilombola Ecológica Morada da Paz, Território de Mãe Preta é um território negro feminino, pois a grande maio- ria das moradoras são mulheres que salvaguardam a cultura matricial de seu povo. Elas nos contam nas rodas de conversa que, aos poucos, “os ho- mens foram indo embora” do território e as mulheres permaneceram. Essa característica não é incomum nos relatos de outras mulheres negras onde as famílias se desagregam e os homens deixam as mulheres, geralmente para criar seus filhos sozinhas. O que é incomum nessa narrativa é como essas mulheres subverteram uma memória histórica de discriminação em função de raça, gênero e classe social porque em seu território reconstruíram essa memória a partir das atividades de cuidado que pautam sua organização, suas estratégias educativas e de sustentabilidade comunitárias (LABREA, 2017). Ficar, permanecer no kilombo é resistir e investir na vida comunitá- ria e reinventar um modo de ser e estar no mundo, diferente daquele que o mundo lhe apresentava (FLORES, 2018, p. 142). O feminino, nesta perspectiva é considerado uma força e em uma roda do grupo de pesquisas OKARAN, ao abordarmos esse assunto, sobre “as que ficaram” houve a seguinte reflexão: “a comunidade sempre foi uma força feminina, mesmo quando o número de homens era igual. Sem- pre se pensou como fazer, como falar, como conviver com mais cuidado, mais afeto, com mais flexibilidade” embora reconheçam que “tem momen- tos que a energia masculina é importante para a comunidade (...) quando se estabeleceram os princípios norteadores precisou de uma força mais dura, mais inflexível” (FLORES, 2018, p. 169-170). O masculino e o feminino enquanto forças estão presentes nos ho- mens e nas mulheres do Território e que essa presença gera um equilíbrio, embora tanto os homens quanto as mulheres no Território de Mãe Preta tenham escolhido deliberadamente desenvolver seu lado espiritual 6 e co- 6 Na CoMPaz, entende-se por espiritualidade a conexão que qualquer ser pode estabele- cer com quaisquer forças que participam do cosmos. O conceito de cosmos é o espaço
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy MjEzNzYz